*Domingueira!

Por Cidinha da Silva

Anos finais da ditadura. Nos barzinhos, festivais de música nos colégios, rodas de violão nos grupos de jovens da igreja, todo mundo canta Geraldo Vandré: “Caminhando e cantando e seguindo a canção, somos todos iguais, braços dados ou não”. Canta-se também “Andança” – “Vi tanta areia, andei, da lua cheia, eu sei, uma saudade imensa”. E Gilberto Gil faz uma versão de No woman no cry, de Bob Marley, aludindo aos desaparecimentos políticos nos porões da repressão militar. Mas parte da moçada negra, alheia a esse movimento de resistência política, só pensa em outro, nos passos de dança no baile black, nas combinações rítmicas e estéticas para brilhar na pista.

 Termina a década de 70, primeiros anos dos 80 e James Brown (infelizmente, um futuro espancador de mulheres) dá aquele gritinho esganiçado e sensual... auuuuuuuu, I fell good -- entram os sopros: pararan raram raram – so good – os sopros novamente – tantan, so good, tantantantan tantan, uuulllll! Foi dado o grito de guerra, os bailarinos e bailarinas deslizam na pista. É dia ainda, matinê, mas a luz do sol não entra. A pintura das paredes é escura e os lustres piscam para dar aquele ar de discoteca. Dezenas de calças “boca-de- sino” vão e vêm, em profusão de movimentos. Blusinhas estampadas, coladas ao corpo das moças, os punhos mais largos, uma espécie de “boca-de-sino” pequena. Sapatos plataforma, pretos, engraxadíssimos. Uma correntinha ou crucifixo no pescoço. Braceletes dourados imitando ouro e os cabelos, ah meu Deus, os cabelos black power, black panther, poder negro no Brasil.

 A indumentária de quem curtia a soul music era cheia de detalhes e requintes, mas os cabelos constituíam um capítulo à parte. Começava pela escolha do pente, seguido pela técnica de desembaraçamento e coroado pelo uso de um disco. Era mais ou menos assim: imagine um garfo. Não, não, não, não é um garfo de mesa, imagine o garfo de Netuno, o rei do mar, imaginou? Aquela coisa imponente, elegante, com três dentes no original. Mas acrescente outros, vários, dentes finos, de metal, levemente espaçados, adequados para o cabelo crespo desenrolar-se por aqueles pequeninos vãos. Diminua o tamanho do cabo, de acrílico. Deixe-o adequado à sua mão, uns dez centímetros bastam. Daí já viu, né? Muito jovem negro que tinha um pente desses no bolso foi preso por “porte ilegal de armas”. Mas o pior não era ser preso, era ficar sem o pente e ser impedido de cuidar dos cabelos. E você pode me perguntar por que esse pente era carregado no bolso. Ora, para retocar o penteado entre uma sessão de música “quente” e outra “lenta” durante o baile. As meninas eram mais discretas ou mais contidas e costumavam portar um garfo menor, dentro da bolsa, de material mais flexível, tipo plástico.

 De volta ao ritual de desembaraçamento, recomendava-se passar o garfo da raiz dos cabelos até as pontas, eriçando-os, numerosas vezes. De olho no espelho e acertando-os com mãos incansáveis. E o disco, onde entra? Nos arremates. Era o disco, um compacto simples ou pedaço de long play, o finalizador da cerimônia. Aquele que acertava os fios soltos e deixava o cabelo impecavelmente redondo.

 Durante o baile, quando começa a primeira sessão de música lenta é aquela correria para os banheiros. Os garotos sacam o pente do bolso de trás da calça e iniciam os retoques à cabeleira e ai daquela que num carinho mais afoito desarrumasse alguns fios da juba circular do amado. Era motivo para fim de relacionamento. As garotas seguem para seu respectivo banheiro e fazem a mesma coisa. Aproveitam também para lavar o rosto suado e renovar o batom que será borrado nos beijos seguintes. Termina a primeira sessão de “lentas” e o disc jockey aproveita para apresentar um grupo pouco conhecido da galera, um tal The Wailers – get up, stand up, get up for your rights, get up, stand up, don’t give up to fight.

 Chega a esperada hora do concurso de melhor dançarino e dançarina da noite. A disputa entre as meninas pega fogo, mas só enquanto Nena não entra na pista. Depois que ela chega, altaneira e soberana em seu metro e meio, não há mais concorrência. Em sua performance inicial, os punhos postam-se cerrados próximos à barriga, cabeça para a esquerda, pés para a direita e escorrega para a esquerda. A cabeça sempre do lado oposto ao pé que conduz o movimento. Desliza, flutua, põe as mãos para trás e roda, dá uma pirueta. E a gente embevecida com a agilidade dela. Quando menos se espera ela cruza os braços junto ao peito, empina a cabeça, joga-a para trás e vai para o chão de pernas abertas, em uma abertura que àquela época encantou Nádia Comanetti. Hoje arrancaria aplausos de Daiane dos Santos. E não tem para ninguém. As outras meninas dançam até terminar a música, só para evitar a vergonha de abandonar a disputa pela metade, mas o resultado já é de domínio público: NE-NA! NE-NA! NE-NA!

*Do meu primeiro livro: Cada tridente em seu lugar
Arte: Iléa Ferraz

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