Hábitos estrangeiros e cicatrizes de guerra põem à prova clínica de saúde dos EUA

(Por: Denise Grady, do NewYork Times, traduzido pelo UOL). Em Mineápolis / EUA O homem da Somália senta-se nervosamente em uma sala de exames no Centro Médico do Condado de Hennepin, esfregando cuidadosamente as pontas dos dedos no lado esquerdo da cabeça. "Você será submetido a uma cirurgia para remover estilhaços do seu crânio", diz a ele o médico Steven Hillson, fazendo uma pausa para que a intérprete somali, que usa um lenço negro e uma saia que vai até o chão, possa traduzir. O paciente, Abdulqadir Jiirow, 31, balança a cabeça em sinal de assentimento e explica que o estilhaço está lá desde 1991, quando ele tinha 14 anos de idade e a guerra civil eclodiu na Somália. Ele recebeu o ferimento quando um projétil de artilharia atingiu a sua casa. O problema só passou a atrapalhá-lo realmente recentemente, quando ele começou a trabalhar em uma unidade de empacotamento de carne e o capacete e os óculos de proteção necessários para o trabalho pressionaram dolorosamente a sua cabeça. Jiirow conta que trabalha em uma pequena cidade que fica a várias horas de viagem, e que divide um apartamento com outros somalis, enquanto a mulher e o filho vivem em Mineápolis. Ele vê os dois aos finais de semana. Enfermeira Deborah Boehm (dir.) atende a paciente somali(esq.) ajudada por intérprete "É impressionante", diz o médico, sacudindo a cabeça, depois que Jiirow vai embora. "'Alguém alvejou a minha casa com peças de artilharia'. Mas isso é comum aqui". O Centro Médico do Condado de Hennepin, um vasto complexo no centro de Mineápolis, próximo ao Metrodome, proporciona um quadro extraordinário da forma como os imigrantes estão colocando à prova a estrutura médica norte-americana. Os recém-chegados - muitos fugindo da repressão, da guerra, do genocídio e da pobreza extrema - trazem consigo padrões distintos de doenças e ferimentos, bem como crenças culturais sobre vida, morte, doença e saúde. Em uma cidade na qual antigamente suecos e noruegueses tinham hospitais separados, o Centro Médico de Hennepin investe US$ 3 milhões anualmente em intérpretes fluentes em 50 línguas para possibilitar a comunicação efetiva com os seus pacientes nascidos no estrangeiro. Muitos chegam com problemas de saúde raramente vistos neste país - deficiências vitamínicas, parasitas intestinais e doenças infecciosas como tuberculose, por exemplo - bem como com níveis elevados e anormais de trauma emocional e estresse. Com o passar do tempo, à medida que adquirem hábitos ocidentais, alguns desenvolvem também problemas de saúde ocidentais, como obesidade, diabetes e cardiopatias, mas mesmo assim eles frequentemente questionam os tratamentos com os quais não estão familiarizados, e que duram a vida toda, e que são necessários no caso dessas doenças crônicas. Alguns também resistem às práticas e ao conhecimento médico tradicionais, obrigando o hospital a implementar mudanças. A objeção das mulheres somalis a terem o parto com médicos do sexo masculino levou o Hennepin, gradualmente, a criar uma equipe obstétrica quase que inteiramente composta de mulheres. Os médicos daqui dizem que para muitos desses recém-chegados, os problemas de saúde mais comuns, e os mais difíceis de tratar, ficam naquela linha difusa entre o corpo e a mente, onde as cicatrizes emocionais de passados complicados podem emergir como doenças físicas, dores e depressão. "Quem é imigrante terá uma doença crônica para o resto da vida", diz a médica Verônica Svetaz, nascida na Argentina, e que trabalha em uma das clínicas de bairro do condado de Hennepin. "O indivíduo não pertence mais a lugar algum". Vindos de países distantes Assim como diversas outras cidades norte-americanas, Mineápolis recebeu uma quantidade tremenda de hispânicos. Muitos deles vieram do Equador e do México e estão aqui ilegalmente. Os hispânicos, tanto legais quanto ilegais, representam o maior grupo de imigrantes no Estado, bem como no país. Mas, desde o final da década de 1970, esta que outrora era uma cidade branca na pradaria, congelada durante a metade do ano, passou também a receber levas de refugiados legais vindos de regiões bem mais distantes do planeta: Vietnã, Camboja, Laos, Rússia, Bósnia Herzegóvina, Libéria, Etiópia, Somália, Mianmar e outros países. Um número tão grande de indivíduos oriundos de zonas de guerra veio para cá que um grupo não governamental criou o primeiro Centro de Vítimas da Tortura do país em Mineápolis, em 1987. Em todo o Estado, o número de pessoas nascidas no exterior mais do que dobrou na década de 1990, e atualmente esse grupo é formado por quase 250 mil indivíduos. Eles representam 5% da população. O número de imigrantes da Somália tem sido particularmente grande. Um milhão de pessoas fugiram daquele país quando a guerra civil eclodiu. Muitos passaram anos em campos de refugiados pobres carentes de estrutura e repletos de doenças ou em favelas na Etiópia e no Quênia. Os que tiveram mais sorte, aqueles que receberam status de refugiados políticos, começaram a chegar aos Estados Unidos em meados da década de 1990. Muitos foram transferidos para Mineápolis pelo Departamento de Estado devido ao robusto sistema de serviços sociais da cidade e aos vários grupos de ajuda aos recém-chegados. Calcula-se que haja de 35 mil a 40 mil somalis no Estado de Minnesota, a maioria deles em Mineápolis, o que é mais do que em qualquer outra cidade norte-americana. Mas o número exato é desconhecido, já que os refugiados não são rastreados quando se mudam de um Estado para outro. Algumas autoridades e os próprios somalis acham que o número é bem maior do que o Estado calcula, chegando talvez ao dobro do estimado. "Ninguém é capaz de contá-los", diz Osman Harare, que na Somália era médico e autoridade de saúde pública, e que no Hennepin tornou-se defensor e intérprete dos pacientes. "Nós somos nômades". A comunidade está prosperando, embora enfrente problemas. O Birô Federal de Investigação (FBI) investiga se jovens somalis que moram em Mineápolis foram recrutados para cometer atos de terrorismos na Somália, e as autoridades da área de saúde têm examinado relatórios que indicam a existência de índices incomumente elevados de autismo entre os filhos de imigrantes somalis. O hospital do condado de Hennepin, que possui 446 leitos, tem a tradição de não rejeitar ninguém, e tornou-se a primeira parada para muitos imigrantes que necessitam de um médico. Não são feitas perguntas sobre a situação dos pacientes perante a lei de imigração. Cerca de 20% dos pacientes do centro nasceram em outros países, e cerca de US$ 100 milhões das despesas anuais de US$ 500 milhões com tratamentos de pacientes são destinados a eles. Os intérpretes do Hennepin são chamados para ajudar pacientes mais de 130 mil vezes por ano. A maior demanda é por intérpretes de língua espanhola, e a seguir por indivíduos que traduzem o idioma somali. Um dos desafios para o tratamento dos imigrantes é o dinheiro. O Hennepin tem um custo anual de US$ 45 milhões que não é reembolsado, e embora os imigrantes não sejam responsáveis por toda essa cifra, eles representam "um fator que muito contribui para ela", segundo Mike Harristhal, o vice-presidente de políticas públicas e estratégia do hospital. A maioria dos somalis está neste país legalmente e qualifica-se para vários programas governamentais de seguro saúde. Mas para quem está aqui ilegalmente, a história é bem diferente. Antigamente eles tinham acesso ao Medicaid, mas não têm mais, exceto em casos de emergência, em se tratando de mulheres grávidas ou de pessoas com menos de 18 anos. O Hennepin tem uma tabela variável de preços para os indigentes, mas alguns não conseguem arcar nem com valores tão baixos. Uma parcela da população de Minnesota se opõe à imigração e ressente-se com o fato de pagar as contas dos estrangeiros, e os funcionários do Hennepin reconhecem que o clima cosmopolita da instituição afasta alguns potenciais clientes. Mas o hospital é um centro de traumatologia renomado. Até mesmo aqueles que torcem o nariz para a clientela admitem que, para pacientes que se envolveram em um acidente automobilístico, não há nenhum hospital melhor. Necessidades complexas da clínica Grande parte do trabalho do Hennepin com os imigrantes ocorre em um conjunto de salas de exames e consultórios no sétimo andar, que se tornou uma clínica de saúde internacional que possui determinados dias reservados para vários grupos étnicos. Em uma tarde de terça-feira no outono passado, uma mulher da Somália de 62 anos de idade fez a sua primeira vista à clínica. Inicialmente, ela estava exuberante, falando tão rapidamente que o intérprete mal conseguia acompanhá-la. "Eu adoro este grande hospital público, que pertence ao mesmo governo que me recebeu aqui de braços abertos após a guerra e a tristeza da Somália", disse ela, sorrindo para a enfermeira Deborah Boehm. "A sua face me dá boas-vindas". O sorriso largo da paciente revelava falhas na dentição. Ela usava um tradicional lenço muçulmano, uma saia azul e roxa que ia até os pés, sandálias de dedos e um xale transparente sobre um casaco de moletom. As suas unhas estavam pintadas de esmalte laranja. Ela trazia uma dúzia de frascos de pílulas obtidos em outras clínicas de Mineápolis, e uma longa lista de enfermidades: artrite, problemas digestivos, alergias, insônia e, o pior de tudo, dores. Nos últimos meses ela deu entrada duas vezes na sala de emergência devido a dores terríveis nas pernas e uma ardência dolorida do lado do corpo. Boehm diz que pedirá um exame de sangue para medir o nível de vitamina D, porque deficiências vitamínicas comuns nos somalis são uma causa frequente de dores (dores por todo o corpo não são incomuns entre os somalis, e as pessoas mais velhas às vezes dizem aos médicos que se sentem como se tivessem sido pisoteados por camelos e cavalos durante toda a noite). O corpo usa a luz do sol para sintetizar vitamina D, e pessoas de pele escura produzem uma quantidade dessa substância bem menor do que as de pele clara. As mulheres somalis são especialmente propensas a sofrer de deficiências porque as suas roupas tradicionais cobrem grande parte da pele. A paciente disse que à vezes não é capaz de recordar-se de quantos dos seus filhos ainda estão vivos. O esquecimento teve início quando ela deixou a África e os problemas de lá. Boehm, 56, que tem cabelos curtos e encaracolados e que usa óculos, olhou intensamente para a paciente enquanto tomava notas e disse, "Haa", que quer dizer "sim" em somali. "Me fale sobre os problemas". A face da mulher se contraiu. Ela balançou-se na cadeira, emitiu umas poucas palavras, e a seguir mordeu a mão e enxugou as lágrimas dos olhos com o xale. A tradução, "Não me faça recordar", foi desnecessária. Boehm mudou calmamente de assunto, passando a falar de questões relativas à digestão e sobre um supermercado local que vende leite de camelo. Mais tarde, Boehm previu que descobriria que grande parte dos problemas físicos da sua nova paciente tem raízes emocionais na Somália. A angústia que se traduz em dor e depressão é algo que Boehm presencia com frequência ao tratar de refugiados somalis. Boehm começou a trabalhar com mulheres somalis na clínica em 1997, e o seu trabalho complicou-se rapidamente. "Passei a ouvir queixas de dores", conta Boehm. "Eu não conseguia encontrar nenhum motivo para isso. Elas diziam que a sensação era de queimadura com fogo ou de um choque elétrico, descrições com as quais eu não estava familiarizada. Eu pedia raios-x, exames laboratoriais e prescrevia fisioterapia. Por algum motivo, eu não conseguia acabar com as dores das pacientes. Após passar de seis a 12 meses nesta situação, decidi examinar o estado de saúde mental dessas pessoas". A pedido dela, a clínica contratou uma psicóloga. "Eu trabalhei intensamente para colocar essas mulheres na terapia", diz Boehm. Mary Bradmiller, a psicóloga, diz que os índices de depressão e desordem do estresse pós-traumático são elevados. "A maioria das pacientes somalis é constituída de mães com problemas tremendos de estresse psicossocial, violência doméstica, questões relativas à proteção dos filhos, traumas de guerra, pesadelos, memórias traumatizantes e separação dos familiares", afirma Bradmiller. Um estudo realizado em 2004 nos Estados Unidos com 1.134 refugiados da Somália e da Eritreia revelou que 25% dos homens e 47% das mulheres foram torturados, índices que os pesquisadores consideraram chocantemente elevados. A tortura das mulheres frequentemente envolve o estupro. Os sobreviventes muitas vezes resistem à ajuda psicológica e negam os seus problemas. A cultura somali, como várias outras, estigmatiza a doença mental. Na Somália, os problemas mentais são frequentemente atribuídos à possessão por espírito, e a psicoterapia é praticamente inexistente. "Em casos como esses eles talvez conversassem com um xeque, um imame ou uma curandeira", diz Bradmiller. Ela mantém propositalmente um consultório na clínica médica, um local familiar para os pacientes, de forma que estes não tenham a sensação de estarem frequentando um hospital psiquiátrico. O diretor de tratamento dos somalis, o médico Douglas Pryce, e Boehm pedem a certos pacientes que vejam Bradmiller e às vezes até os acompanham pelo corredor para certificarem-se de que eles foram de fato até a psicóloga. "Eles jamais vêm fazer terapia, a menos que haja uma recomendação enérgica por parte de um médico no qual confiem", explica Bradmiller. Mesmo assim, não tem sido fácil. No início, ela percebeu uma expressão indignada nas faces dos pacientes quando o papel dela era explicado. Bradmiller descobriu que alguns intérpretes a estavam chamando de "médica de loucos". Outros intérpretes riam do que os pacientes falavam. De fato, segundo Bradmiller, alguns terapeutas deixaram a clínica devido aos problemas com os intérpretes. Agora ela se apresenta como "terapeuta de conversa" e escolhe cuidadosamente os intérpretes. "Algumas pacientes desistiram completamente" diz Bradmiller. "Os filhos mais velhos estão trazendo os mais novos, e a mãe não sai mais de casa". Bradmiller diz que se os pacientes chegam a ponto de falar sobre o que aconteceu com eles na Somália ou nos campos de refugiados, é preciso lidar cuidadosamente com a situação para evitar que eles fiquem novamente traumatizados. As histórias contadas pelos pacientes podem também trazer de volta as terríveis histórias dos intérpretes, de forma que Bradmiller procura encontrar os intérpretes menos vulneráveis. "Procuro não digerir o que está sendo dito de forma que a história não me afete", diz Abdi Rahmansali, um dos intérpretes. "Me esforço ao máximo, mas sou um ser humano. Fico afetado. Às vezes, por mais que a gente tente, dá para sentir o cabelo arrepiar-se". Bradmiller calcula que cerca de apenas 10% das suas pacientes enxerguem um vínculo entre a dor física e a emocional. Mas, segundo ela, para aquelas que enxergam essa conexão, as mudanças podem ser surpreendentes. "As pacientes passam a ir à escola, cozinhar, usar maquiagem e roupas coloridas. Elas começam a falar com a gente em inglês", diz a psicóloga. "Quando a vida torna-se mais interessante do que a terapia, é hora de a terapia acabar". Tratamento doméstico em questão Em uma tarde no final de setembro, Pryce e Harare, o intérprete e defensor dos direitos dos pacientes, emergiram de uma sala de exames com uma expressão cansada, mas triunfante. Eles tinham acabado de negociar, educada, mas persistentemente, com um paciente que - de forma também educada e persistente - recusava-se a fazer um exame de sangue porque aquele era o mês sagrado do Ramadã, e ele temia que a retirada de sangue pudesse constituir-se em um pecado. Finalmente, os dois telefonaram para um imame, que declarou que não havia pecado algum nisso. A amostra de sangue foi retirada. Pryce diz que uma das grandes alegrias de se trabalhar em um hospital como o Hennepin é a descoberta de formas de superar as barreiras culturais - e saber que os seus pacientes estão melhores por causa disso. Mas ele afirma que os desafios culturais ocorrem também no sentido inverso. E ultimamente um problema começou a perturbar ele e Boehm. Os pacientes somalis têm pedido a eles que preencham atestados dizendo que necessitam de assistentes para tratamento pessoal doméstico. Pryce afirma que alguns não necessitam dessa ajuda, mas estão sendo recrutados por agências de tratamento de saúde administradas por somalis que desejam embolsar os pagamentos do seguro pelos serviços. Os somalis em Mineápolis, muitas vezes empreendedores e voltados para os negócios, abriram agências para tirar vantagem de certas regras relativamente generosas de Minnesota que tinham o propósito original de ajudar a manter os idosos e os pacientes com enfermidades crônicas fora de asilos. Tricia Alvarado, diretora de tratamentos domésticos da Agência de Enfermeiras Visitantes de Minnesota, que avalia os pedidos de auxílio doméstico, concorda que houve um aumento explosivo do número de agências somalis, sendo que cerca de cem foram inauguradas somente nos últimos três anos. Muitas delas são administradas por pessoas que não tiveram qualquer treinamento médico. E Alvarado confirma que as agências estão tentando obter clientes potenciais. "Diabetes?", pergunta Pryce, reproduzindo aquilo que segundo ele foi uma conversa típica entre um paciente somali e uma agência dirigida por somalis. "Você precisa de um assistente de tratamento pessoal. Eis aqui o formulário. Entregue-o ao seu médico". Pryce rejeita os pedidos que considera injustificados, mas os pacientes reclamam e, às vezes, até simulam estar mais doentes do que de fato estão. "Tudo isso me deixa furioso", diz Pryce. "Quero ser um bom administrador dos nossos recursos, do dinheiro do contribuinte que estamos usando'. De acordo com ele o mesmo ocorreu com imigrantes russos na década de 1990, ainda que à época as regulamentações estaduais fossem mais rígidas. A atual situação relativa aos somalis faz parte de um problema maior no Estado de Minnesota: o número de clientes e os custos do tratamento pessoal mais do que dobraram entre 2002 e 2008, e a quantidade de agências mais do que triplicou. Um relatório divulgado em janeiro pelo auditor legislativo do Estado afirmava: "Os serviços de tratamento pessoal continuam inaceitavelmente vulneráveis a fraudes e abusos". O Estado está elaborando planos para aumentar o controle sobre esses serviços. "Eu adoro o povo e a cultura somalis", diz Pryce. "Gosto de cuidar deles. É recompensador e interessante. Eles não bebem, não fumam muito, estão vivendo o sonho americano, e precisam da nossa ajuda. Mas há esse outro lado que é realmente doloroso, a questão polêmica de determinar quem receberá o que".

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