Resposta do professor Kabengele Munanga ao ilusionista midiático Demétrio Magnóli
*Manifestação do professor Kabengele Munanga acerca da matéria “Monstros
tristonhos” publicada no jornal O Estado de S. Paulo de 14 maio de 2009,
de autoria de Demétrio Magnoli*
"Em matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo de 14 maio de 2009
(http://arquivoetc . blogspot. com/2009/
05/demetrio- magnoli-monstros -tristonhos. html), intitulada “Monstros
tristonhos”, o geógrafo Demétrio Magnoli critica e acusa agressivamente
as Universidades Federais de Santa Maria (UFSM) e de São Carlos (UFSCAR)
e também a mim, Kabengele Munanga, Professor do Departamento de
Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo.
As duas universidades são criticadas e acusadas por terem, segundo o
geógrafo, criado ”tribunais raciais” que rejeitam as matrículas de
jovens mestiços que optam pelas cotas raciais. No caso da Universidade
Federal de Santa Maria, trata-se apenas de Tatiana de Oliveira, cuja
matrícula foi cancelada menos de um mês após o início do curso de
Pedagogia.. No caso da Universidade Federal de São Carlos, trata-se do
estudante Juan Felipe Gomes. O acusador acrescenta que um quarto dos
candidatos aprovados na UFSCAR pelo sistema de cotas raciais neste ano
de 2009 teve sua matrícula cancelada pelo “tribunal racial” dessa
universidade.
A questão que se põe é saber se além desses estudantes, cujas matrículas
foram canceladas, outros alunos mestiços ingressaram em cerca de 70
universidades públicas que aderiram à política de cotas. Se a resposta
for afirmativa, os que tiveram sua matrícula cancelada constituem casos
raros ou excepcionais que mereceriam a atenção não apenas de Demétrio
Magnoli, mas também de todas as pessoas que defendem a justiça e a
igualdade de tratamento.
Mas por que esses casos raros, que constituem uma exceção e não a regra,
foram “injustiçados” pelas comissões de controle formadas nessas
universidades para evitar fraudes, comissões que o sociólogo Demétrio
rotula de “tribunais raciais”? Por que só eles? Por que não ocorreu o
mesmo com os outros mestiços aprovados? Houve realmente injustiça racial
ou erro humano na avaliação da identidade física dessas pessoas que
foram simplesmente consideradas brancas e não mestiças apesar de sua
autodeclaração? Os erros humanos, quando são detectados, devem ser
corrigidos pelos próprios humanos, como o foi no caso dos estudantes
gêmeos da UnB. As injustiças, flagrantes ou não, devem ser apuradas e
julgadas pela própria justiça que, num estado democrático de direito
como o Brasil, deverá prevalecer. Acho que os estudantes Tatiana de
Oliveira e Juan Felipe Gomes, e tantos outros que o sociólogo menciona
sem entretanto nomeá-los, devem procurar um advogado para defender seus
direitos se estes tiverem sido efetivamente violados pelos chamados
“tribunais raciais”. Entendo que o geógrafo Demétrio tenha pena deles,
considerando a sua sensibilidade humana.
Se realmente houve erro humano na verificação da identidade desses
estudantes, a explicação não está na citação intencionalmente deturpada
de algumas linhas extraídas de um texto introdutório de três páginas ao
livro de Eneida de Almeida dos Reis, intitulado* MULATO: negro-não-negro
e/ou branco-não-branco,* publicado pela Editora Altara, na Coleção
Identidades, São Paulo, em 2002.
Veja como é interessante a estratégia de ataque do geógrafo Demétrio
Magnoli. Ele escondeu de seus leitores o título do livro de Eneida de
Almeida dos Reis, assim como a casa editora e a data de sua publicação
para evitar que possíveis interessados pudessem ter acesso à obra para
averiguar direta e pessoalmente o fundamento das acusações. De fato, ele
não disse absolutamente nada sobre o conteúdo desse livro, e passa a
impressão de ter lido apenas vinte linhas do total de três páginas da
introdução, a partir das quais constrói seu ensaio e sua acusação. Com
sua inteligência genuína, acho que ele poderia ter feito uma pequena
síntese desse livro para seus leitores; se ele o tivesse mesmo lido,
entenderia que nada inventei sobre a ambivalência genética do mestiço
que não estivesse presente no próprio título da obra “Mulato:
negro-não-negro e/ou branco-não-branco”. Desde quando a palavra
ambivalência é sinônimo de “monstro tristonho”? Estamos assistindo à
invenção, pelo geógrafo, de novos verbetes dos dicionários da língua
portuguesa?
O livro de Eneida de Almeida dos Reis resultou de uma pesquisa para
dissertação de mestrado defendida na PUC de São Paulo sob a orientação
de Antonio da Costa Ciampa, Professor do Programa de Estudos
Pós-graduados em Psicologia da PUC São Paulo. Ele foi convidado a fazer
a apresentação do livro, na qualidade de professor orientador, e eu para
escrever a introdução, na qualidade de ex-professor na disciplina
“Teorias sobre o racismo e discursos antirracistas”, ministrada no
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP. O livro se
debruça sobre as peripécias e dificuldades vividas pelos indivíduos
mestiços de brancos e negros, pejorativamente chamados mulatos, no
processo de construção de sua identidade coletiva e individual, a partir
de um estudo de caso clínico. É uma pena que nosso crítico acusador não
tenha tido a coragem de apresentar a seus leitores o verdadeiro conteúdo
desse livro, resultado de uma meticulosa pesquisa acadêmica, e não da
minha fabulação.
Para entender porque essas pessoas mestiças foram consideradas brancas,
apesar de terem declarado sua afrodescendência, é preciso voltar ao
clássico “Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais”, de
Oracy Nogueira (São Paulo: T.A. Queiroz, 1985). Se o geógrafo Demétrio
tivesse lido esse livro, acredito que teria entendido porque as pessoas
brancas que possuem algumas gotas de sangue africano são consideradas
pura e simplesmente negras nos Estados Unidos – apesar de exibirem uma
fenotipia branca – e brancas no Brasil. Ensina Nogueira que a
classificação racial brasileira é de marca ou de aparência,
contrariamente à classificação anglo-saxônica que é de origem e se
baseia na “pureza” do sangue. Do ponto de vista norteamericano, todos os
brasileiros seriam, de acordo com as pesquisas do geneticista Sergio
Danilo Pena, considerados negros ou ameríndios, pois todos possuem, em
porcentagens variadas, marcadores genéticos africanos e ameríndios, além
de europeus, sem dúvida. Quando essas pessoas fenotipicamente brancas e
geneticamente mestiças se consideram ou são consideradas brancas no
decorrer de suas vidas e assumem, repentinamente, a identidade
afrodescendente para se beneficiar da política das cotas raciais, as
suspeitas de fraude podem surgir. Creio que foi o que aconteceu com os
alunos cujas matrículas foram canceladas na UFSM e na UFSCAR. Se não
houver essa vigilância mínima, seria melhor não implementar a política
de cotas raciais, porque qualquer brasileiro pode se declarar
afrodescendente, partindo do pressuposto de que a África é o berço da
humanidade..
Lembremo-nos de que no início dos debates sobre as cotas colocava-se a
dificuldade de definir quem é negro no Brasil por causa da mestiçagem.
Falsa dificuldade, porque a própria existência da discriminação racial
antinegro é prova de que não é impossível identificá-lo. Senão, o
policial de Guarulhos não teria assassinado o jovem dentista
identificado como negro pelo cidadão branco assaltado, e os zeladores de
todos os prédios do Brasil não teriam facilidade para orientar os
visitantes negros a usar os elevadores de serviço. Por sua vez, as raras
mulheres negras moradoras dos bairros de classe média não seriam
constantemente convidadas pelas mulheres brancas, quando se encontram
nos elevadores, para trabalhar como domésticas em suas casas. Existem
casos duvidosos, como o dos alunos em questão, que mereceriam uma
atenção desdobrada para não se cometer erros humanos, mas não houve
dúvidas sobre a identidade da maioria dos estudantes negros e mestiços
que ingressaram na universidade através das cotas.
Bem, o geógrafo Demétrio Magnoli leva ao extremo a acusação a mim
dirigida quando me considera um dos “*ícones do projeto da racialização
oficial do Brasil”. *Grave acusação! Infelizmente, ele não deu nomes a
outros ícones. Nomeou apenas um deles, cuja obra não leu, ou melhor,
demonstra não ter lido. Mas por que só o meu nome mencionado? Porque sou
o mais fraco, pelo fato de ser brasileiro naturalizado, ou o mais
importante, por ter chegado ao ponto mais alto da carreira acadêmica?
Isso parece incomodá-lo bastante! Um negro que chegou lá, ao topo da
carreira acadêmica, numa das melhores universidades do país, mas nem por
isso esse negro deixou de ser solidário, pois milita intelectualmente
para que outros negros, índios e brancos pobres tenham as mesmas
oportunidades.
De acordo com as conclusões assinaladas no livro de Eneida de Almeida
dos Reis, muitos mestiços têm dificuldades para construir sua identidade
por causa da ambivalência (Mulato: negro-não-negro e/ou
branco-não-branco) , dificuldades que eles teriam superado se tivessem
política e ideologicamente assumido uma de suas heranças, ou seja, a sua
negritude, que é o ponto nevrálgico de seu sofrimento psicológico. Se o
sociólogo acusador tivesse lido este livro e refletido serenamente sobre
suas conclusões, ele teria percebido que não alimento nenhum projeto ou
plano de ação para suprimir a mestiçagem no Brasil. Isto só pode ser
chamado de masturbação ideológica, e não de análise sociológica, nem
geográfica! Como seria possível suprimir a mestiçagem, que é um fato
fundamental da história da humanidade, desafiando as leis da genética e
a vontade dos homens e das mulheres que sempre terão intercursos
interraciais? Nem o autor do ensaio sobre as desigualdades das raças
humanas, Arthur de Gobineau, chegou a acreditar nessa possibilidade. Se
as leis segregacionistas do Sistema Jim Crow no Sul dos Estados Unidos e
do Apartheid na África do Sul não conseguiram fazê-lo, os ícones da
racialização oficial do Brasil, entre os quais nosso colega me situa,
terão esse poder mágico e milagroso que ele lhes atribui?
Entrando na vida privada, gostaria que o sociólogo soubesse que tenho um
filho e uma neta mestiços que não são monstros tristonhos como ele
pensa, pois são educados para assumir sua negritude e evitar assim os
graves problemas psicológicos apontados na obra de Eneida de Almeida Dos
Reis, através da indefinida personagem Maria, (ver p.39-100). Como se
pode dizer que os mestiços são geneticamente ambivalentes e que política
e ideologicamente não podem permanecer nessa ambivalência e ser por isso
taxado de charlatão acadêmico? Creio que se trata apenas de uma reflexão
que decorre das conclusões do próprio livro e que de /per si/ não
constituiria nenhum charlatanismo. Não seria um contra-senso e um grave
insulto à USP que esse “charlatão acadêmico” tenha chegado ao topo da
carreira acadêmica? E que tenha orientado dezenas de doutores hoje
professores nas grandes universidades brasileiras, como a USP, UNICAMP,
UNESP, UFMG, UFF, UFRJ, Universidade Federal de Goiás, Universidade
Federal de São Luiz do Maranhão, Universidade Estadual de Londrina,
Universidade Candido Mendes, PUC de Campinas, etc. Creio que, salvo o
geógrafo Demétrio, os que me conhecem através de textos que escrevi, de
minhas aulas e de minhas participações nos debates sociais e
intelectuais no país e no exterior, não me atribuiriam esse triste retrato.
Disse ainda o geógrafo Demétrio que */“do ponto mais alto da carreira
universitária, o antropólogo professa a crença do racismo científico,
velha de mais de um século, na existência biológica de raças humanas,
vestindo-a curiosamente numa linguagem decalcada da ciência genética”./
*Sinceramente, não entendo como Demétrio conseguiu tirar tanta água das
pedras. Das 20 linhas extraídas, de maneira deturpada, de um texto de
três páginas de introdução, ele conseguiu dizer coisas horríveis, como
se tivesse lido tudo que escrevi durante minha trajetória intelectual
sobre o racismo antinegro. A colonização da África, contrariamente às
demais colonizações conhecidas na história da humanidade, foi
justificada e legitimada por um /corpus/ teórico-cientí fico baseado nas
idéias evolucionistas e racialistas produzidas na modernidade ocidental.
Teria algum sentido para mim, que milito contra o racismo, professar o
racismo científico para lutar contra o racismo à brasileira? Acho que
nosso geógrafo quer me transformar num demente que não sou. As pessoas
que leram seu texto no jornal O Estado de S. Paulo podem pensar que eu
sou esse negro ex-colonizado que professa as mesmas idéias do racismo
científico que postulou a inferioridade e a desumanidade dos africanos,
incluída a dele mesmo. Como entender que meus alunos de Pós-graduação, a
quem ensino há vinte anos “As teorias sobre o racismo e discursos
antirracistas”, uma disciplina freqüentada por alunos da USP, de outras
universidades e outros estados, têm a coragem de ocupar um semestre
inteiro para escutar profissões de fé em favor do racismo científico?
Se o geógrafo Demétrio quer saber mais sobre mim, ingressei na Faculdade
em 1964, aos vinte e dois anos de idade. Tive aulas de Antropologia
Física com um dos melhores biólogos e geneticistas franceses, Jean
Hiernaux. Uma das primeiras coisas que ele me ensinou era que a raça não
existe biologicamente. Através de suas aulas, li François Jacob, Nobel
de Fisiologia (1965) e um dos primeiros franceses a decretar que a raça
pura não existe biologicamente; e J.Ruffie, Albert Jacquard e tantos
outros geneticistas antirracistas dessa época. Portanto, sei muito bem,
e bem antes de Demétrio que o racismo não pode ter mais sustentação
científica com base na noção das raças superiores e inferiores, que não
existem biologicamente. Sei muito bem que o conteúdo da raça enquanto
construção é social e político. Ou seja, a realidade da raça é social e
política porque tivemos na história da humanidade povos e milhões de
seres humanos que foram mortos e dominados com justificativa nas
pretensas diferenças biológicas. Temos em nosso cotidiano, pessoas
discriminadas em diversos setores da vida nacional porque apresentam cor
da pele diferente. Nosso sistema educativo é eurocêntrico e nossos
livros didáticos são repletos de preconceitos por causa das diferenças.
Não sou um novato que ingressou ontem na universidade brasileira. No
Brasil, fui introduzido ao pensamento racial nacional por grandes
mestres, como João Baptista Borges Pereira, que foi meu orientador no
doutoramento, Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Oracy Nogueira, entre
outros. Não sei onde estava Demétrio nessa época e em que ano ele
descobriu que a raça não existe. Acho um exagero querer me dar lição de
moral sobre coisas que eu conheço muito antes dele. Isto não quer dizer
que ele não possa me ensinar temas pertinentes à geografia, como por
exemplo, o que se pode ler em seu livro sobre a África do Sul –
“Capitalismo e Apartheid”, publicado pela Editora Contexto, São Paulo,
1998, que oferece algumas informações interessantes sobre a história do
sistema do apartheid. Esse livro faz parte da bibliografia recomendada
na disciplina ministrada na Graduação, não obstante algumas incorreções
históricas nele contidas.
Um dos maiores problemas da nossa sociedade é o racismo, que, desde o
fim do século passado, é construído com base em essencializações
sócio-culturais e históricas, e não mais necessariamente com base na
variante biológica ou na raça. Não se luta contra o racismo apenas com
retórica e leis repressivas, não somente com políticas macrossociais ou
universalistas, mas também, e, sobretudo, com políticas focadas ou
específicas em benefício das vítimas do racismo numa sociedade onde este
é ainda vivo. É neste sentido que faço parte do bloco dos intelectuais
brancos e negros que defendem as políticas de ação afirmativa e de cotas
para o acesso ao ensino superior e universitário. Na cabeça e no
pensamento de Demétrio Magnoli, todos os que fazem parte desse bloco
querem racializar o Brasil, e isso faz parte de um projeto e de um plano
de ação. Que loucura!
Defendemos as cotas em busca da igualdade entre todos os brasileiros,
brancos, índios e negros, como medidas corretivas às perdas acumuladas
durante gerações e como políticas de inclusão numa sociedade onde as
práticas racistas cotidianas presentes no sistema educativo e nas
instituições aprofundam cada vez mais a fratura social. Cerca de 70
universidades públicas estaduais e federais que aderiram à política de
cotas sem esperar a Lei ainda em tramitação no Senado entenderam a
importância e a urgência dessa política. Acontece que essas
universidades não são dirigidas por negros, mas por compatriotas brancos
que entendem que não se trata do problema do negro, mas sim do problema
da sociedade, do seu problema como cidadão brasileiro. Podemos dizer que
todos esses brancos no comando das universidades querem também
racializar o Brasil, suprimir os mestiços e incentivar os conflitos
raciais? Afinal, podemos localizar os linchamentos e massacres raciais
nos Estados onde se encontram as sedes das universidades que aderiram às
cotas? Tudo não passa de fabulações dos que gostariam de manter o
/status quo/ e que inventam argumentos que horrorizam a sociedade. Quem
está ganhando com as cotas? Apenas os alunos negros ou a sociedade como
um todo? Quem ingressou através das cotas? Apenas os alunos negros e
indígenas ou entraram também estudantes brancos da escola pública?
Concluindo, penso que existe um debate na sociedade que envolve
pensamentos, filosofias e representações do mundo, ideologias e
formações diferentes. Esse pluralismo é socialmente saudável, na medida
em que pode contribuir para a conscientização de seus membros sobre seus
problemas e auxiliar a quem de direito, o legislador e o executivo, na
tomada de decisões esclarecidas. Este debate se resume a duas abordagens
dualistas. A primeira compreende todos aqueles que se inscrevem na ótica
essencialista, segundo a qual a humanidade é uma natureza ou uma
essência e como tal possui uma identidade genérica que faz de todo ser
humano um animal racional diferente dos demais animais. Eles afirmam que
existe uma natureza comum a todos os seres humanos em virtude da qual
todos têm os mesmos direitos, independentemente de suas diferenças de
idade, sexo, raça, etnias, cultura, religião, etc. Trata-se de uma
defesa clara do universalismo ou do humanismo abstrato, concebido como
democrático. Considerando a categoria raça como uma ficção, eles advogam
o abandono deste conceito e sua substituição pelos conceitos mais
cômodos, como o de etnia. De fato, eles se opõem ao reconhecimento
público das diferenças entre brancos e não brancos. Aqui temos um
antirracismo de igualdade que defende os argumentos opostos ao
antirracismo de diferença. As melhores políticas públicas, capazes de
resolver as mazelas e as desigualdades da sociedade, deveriam ser
somente macro-sociais ou universalistas. Qualquer proposta de ação
afirmativa vinda do Estado que introduza as diferenças para lutar contra
as desigualdades, é considerada, nessa abordagem, como um reconhecimento
oficial das raças e, conseqüentemente, como uma racialização do Brasil,
cuja característica dominante é a mestiçagem. Ou, em outras palavras, as
políticas de reconhecimento das diferenças poderão incentivar os
conflitos raciais que, segundo dizem, nunca existiram. Assim sendo, a
política de cotas é uma ameaça à mistura racial, ao ideal da paz
consolidada pelo mito de democracia racial, etc. Eu pergunto se alguém
pode se tornar racista pelo simples fato de assumir sua branquitude,
amarelitude ou negritude? Como se identifica então o geógrafo Demétrio:
branco, negro, mestiço ou Demétrio indefinido? Pelo que me consta, ele
se identifica como branco, mas não aceita que os negros e seus
descendentes mestiços se identifiquem como tais e lutem por seus
direitos num país onde são as grandes vítimas do racismo. A menos que
ele negue a existência das práticas racistas no cotidiano brasileiro, e
as diferenças de cor, sexo, classe e religiões que exigiriam políticas
diferenciadas.
A segunda abordagem reúne todos aqueles que se inscrevem na postura
nominalista ou construcionista, ou seja, os que se contrapõem ao
humanismo abstrato e ao universalismo, rejeitando uma única visão do
mundo em que não se integram as diferenças. Eles entendem o racismo como
produção do imaginário destinado a funcionar como uma realidade a partir
de uma dupla visão do outro diferente, isto é, do seu corpo mistificado
e de sua cultura também mistificada. O outro existe primeiramente por
seu corpo antes de se tornar uma realidade social. Neste sentido, se a
raça não existe biologicamente, histórica e socialmente ela é dada, pois
no passado e no presente ela produz e produziu vítimas. Apesar do
racismo não ter mais fundamento científico, tal como no século XIX, e
não se amparar hoje em nenhuma legitimidade racional, essa realidade
social da raça que continua a passar pelos corpos das pessoas não pode
ser ignorada.
/Grosso modo, /eis as duas abordagens essenciais que dividem
intelectuais, estudiosos, midiáticos, ativistas e políticos, não apenas
no Brasil, mas no mundo todo. Ambas produzem lógicas e argumentos
inteligíveis e coerentes, numa visão que eu considero maniqueísta.
Poderão as duas abordagens se cruzar em algum ponto em vez de se manter
indefinidamente paralelas? Essa posição maniqueísta reflete a própria
estrutura opressora do racismo, na medida em que os cidadãos se sentem
forçados a escolher a todo momento entre a negação e a afirmação da
diferença. A melhor abordagem seria aquela que combina a aceitação da
identidade humana genérica com a aceitação da identidade da diferença.
Para ser um cidadão do mundo, é preciso ser, antes de mais nada, um
cidadão de algum lugar, observou Milton Santos num de seus textos. A
cegueira para com a cor é uma estratégia falha para se lidar com a luta
antirracista, pois não permite a autodefinição dos oprimidos e institui
os valores do grupo dominante e, conseqüentemente, ignora a realidade da
discriminação cotidiana. A estratégia que obriga a tornar as diferenças
salientes em todas as circunstâncias obriga a negar as semelhanças e
impõe expectativas restringentes.
Se a questão fundamental é como combinar a semelhança com a diferença
para podermos viver harmoniosamente, sendo iguais e diferentes, por que
não podemos também combinar as políticas universalistas com as políticas
diferencialistas? Diante do abismo em matéria de educação superior,
entre brancos e negros, brancos e índios, e levando-se em conta outros
indicadores socioeconômicos provenientes dos estudos estatísticos do
IBGE e do IPEA, os demais índices do Desenvolvimento Humano provenientes
dos estudos do PNUD, as políticas de ação afirmativa se impõem com
urgência, sem que se abra mão das políticas macrossociais.
Não conheço nenhum defensor das cotas que se oponha à melhoria do ensino
público. Pelo contrário, os que criticam as cotas e as políticas
diferencialistas se opõem categoricamente a qualquer política de
diferença por considerá-las a favor da racialização do Brasil. As leis
para a regularização dos territórios e das terras das comunidades
quilombolas, de acordo com o artigo 68 da Constituição, as leis 10639/03
e 11645/08 que tornam obrigatório o ensino da história da África, do
negro no Brasil e dos povos indígenas; as políticas de saúde para
doenças específicas da população negra como a anemia falciforme, etc.,
tudo isso é considerado como racialização do Brasil, e virou motivo de
piada.
Convido o geógrafo Demétrio Magnoli a ler o que escrevi sobre o negro no
Brasil antes de se lançar desesperadamente em críticas insensatas e
graves acusações. Se porventura ele identificar algum traço de defesa do
racismo científico em meus textos, se encontrar algum projeto ou plano
de ação para suprimir os mestiços e racializar o Brasil, já que ele me
acusa de ícone desse projeto, ele poderia me processar na justiça
brasileira, em vez de inventar fábulas que não condizem com minha
tradicionalmente pública e costumeira postura."
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