“We are the children"
(Por: Elisa Lucinda).
"Quem me conhece sabe que não é do meu feitio batizar em outra língua
uma publicação brasileira. Mas o título exerce dominação no meu
peito esta semana em que fui mestre de cerimônia nos jardins do
Palácio Guanabara, repleto de suas habituais autoridades e de
cidadãos que raramente frequentam estes ares. Era lançamento
nacional do programa Plataforma dos Centros Urbanos, uma iniciativa
iluminada do Unicef, que viabiliza ações de desenvolvimento integral
dos indivíduos nas cidades, a partir do olhar desta galera. São eles
os GAL’s(Grupos Articuladores Locais)compostos de jovens que
entrevistam, pesquisam sobre o que é vulnerável em sua comunidade, e
conduzem a realização de prioridades e demandas de sua aldeia,
digamos assim. Era também nesta tarde a posse de Lázaro Ramos,
queridíssimo ator baiano, como embaixador do Unicef. Pois quando
Marie Pierre, diretora do Unicef, me deu a palavra para que eu o
homenageasse, a reflexão que tomou o proscênio de meu afeto foi a
seguinte: no momento em que o mundo se despede precocemente de seu
ídolo pop negro mais polêmico e criativo, este fato ganha novos
recortes.
Michael foi um menino abusado, explorado, castigado e mal criado
pelo pai com a passiva e, não menos cruel, cumplicidade da mãe. E o
pior, não só a sua aldeia, mas estas torpes histórias o mundo todo
comentava. Um gênio maravilhoso, cuja infância foi roubada e cujo
talento em vida sustentou aquela cambada, aquela mórbida e fria
família, cujos olhos já brilham com os lucros da morte de seu gênio
valiosíssimo. Um menino que ensinou ao mundo os passos da lua e era
chamado de macaco pelo pai monstro com cara de cafetão escroto,
morreu inseguro, infeliz, esfacelado nos trapos da palavra
identidade, desfigurado, retalhado na face, frágil, doente,
anoréxico e esbranquiçado, depois de ter sido o primeiro a, com sua
música pioneira e única, unir as vozes brancas e negras na América e
fora dela.
O mundo testemunhou a tragédia de um mártir que inscreveu no corpo,
na cara, nas bizarras atitudes no patético castelo de horrores da
terra do nunca, as contradições, as injustiças, o racismo e a
crueldade de uma nação chamada de primeiro mundo e de uma
civilização omissa e equivocada. Esta morte pode ser um alerta. O
menino violentado ainda pequeno, afanado em seu direito de ser
criança, não cresceu e, o que nele cresceu, não gostou do que viu.
A dependência crônica dos analgésicos grita em nossos ouvidos como
lhe doía viver. Mas me pergunto por que um milionário que foi
sacaneado na infância e impedido de se construir fora dos palcos,
uma vez que a base de seus casamentos e relações pessoais parecia
seguir as leis da ficção, por que este homem rico de grana e tão
comprometido psicológica e emocionalmente, morreu sem tratamento
adequado? Ser um homem de cinquenta anos, cheio de Mickeys e
Peterpans pelas paredes de seu quarto, criar aquela face
indescritível de batom sob um nariz sem cartilagem e sob olhos
infantis muito tristes não era bizarro, era loucura. Ele estava
dodói e poderia, com uma boa terapia e tratamento psiquiátrico, ter
tido um outro destino onde seu talento pudesse realizar o mundo e a
ele mesmo ainda mais, onde ele pudesse se libertar de vez daquele
demônio paterno.
Meu Deus, e agora estava eu ali, diante de Lázaro, aquele brasileiro
negro lindo, talentosíssimo, coerente em suas ações como artista,
cidadão, solidário, antenado com suas responsabilidades neste mundão
segregacionista, idealizador e apresentador de um programa chamado
“Espelho”, e que, por isso mesmo dispensa explicações, egresso de um
daqueles bairros pobres de Salvador mas que, dentro de toda a
pobreza, foi criado como menino seguro, forte, amado pelo pais,
ancorados no amor por si e pelos seus. Ouvi o discurso simples do
jovem embaixador, sua brilhante inteligência sob cabelos muito bons
e crespos, um sorriso luminoso e delicioso, com aquela mesma cara
ensolarada do primeiro Michael, o menino de ouro do gupo Jackson
Five, de nariz largo, voz linda, cheio de sonhos cantando /I’ll be
there/.
Lázaro foi emblemático para mim naquela tarde de uma cerimônia
patrocinada por uma instituição cujo foco, cuja mola mestra é a
infância. Meus senhores, não há futuro possível sem uma infância e
adolescência cuidadas. É uma conta que, geralmente, desanda. Ainda
tem muito menino preto que cresce achando que só pode lhe sobrar ser
“Triller” e “Bad”, ser preto e mau. O tema é amplo, toda criança, de
qualquer tom ou origem social, merece uma opção de vida cidadã.
Então, ao mesmo tempo em que meu coração chorava em luto por quem
foi talvez a mais triste e genial criança americana, uma forte luz
vinha daquela tarde representada em Lázaro, como a me dizer que
novos tempos se anunciam. No momento em que a crise do mundo quebra
as pernas da arrogância da razão, novas plataformas mais emocionais,
mais humanas, mais responsáveis, surgem para dar a mão e novas
saídas para o menino mundo; o que sempre é e sempre será feito de
ex-crianças, de crianças que cresceram . Uma criança que não tem a
infância roubada, pode envelhecer em paz, e, sem enlouquecer, viver
pra sempre".
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