Alguma poesia para chamar o sol e saudar as águas
Por Cidinha da Silva
No dia 17 de abril de 2016,
durante a homologação do golpe contra Dilma na Câmara dos Deputados, quando a
leoa Jandira Feghali se aproximou do microfone para votar contra o golpe e
tinha o rosto abatido, dolorido, destroçado, eu não agüentei. Abandonei a TV e
me refugiei no telefone.
Por que não atendi ao chamado do
Paraguaçu para assistir a votação às suas margens? Era o que me perguntava. É
que nunca, nem no pior dos meus pesadelos, imaginei aquele espetáculo de
re-colonização encenado pela casa-grande.
E parecia que Jandira ia chorar.
E ela poderia ter chorado, sem perder um milímetro de sua força. Seria o choro
represado por todas nós. Seriam lágrimas nossas como foi o cuspe de Jean Willys
no deputado nazista.
Aliás, não tive forças para
assistir o voto de Jean também. Eu o ouvi de longe enquanto buscava ungüento
para meu desamparo. Meu bote de salvação foi a lembrança de um professor de
literatura que certa feita me disse: “Todas as vezes que morre alguém que amo,
leio poesia. É a única coisa que me conforta”.
Eu morri um pouco aquele dia.
Minha ilusão de justiça social também. Precisava de salvação e busquei a
poesia.
O bote-salva-vidas foi
“Correntezas e outros estudos marinhos”, de Lívia Natália. Li a apresentação, o
prefácio e o primeiro poema. Quando cheguei ao segundo, “Sina”, li e reli umas
seis vezes e resolvi dar uma pausa ao meu coração, contudo, o bichinho se
acabrunhou novamente quando o barulho de panelas, foguetes e gritos de “fora
Dilma” interrompeu o torpor poético que aplacara em mim o desespero. Assisti um
pouco mais daquelas cenas macabras que expuseram nossas vísceras apodrecidas ao
mundo.
Voltei à poesia para continuar
viva. Durante a leitura, o previsto aconteceu. A poesia de Lívia Natália sangrou
fertilidade e me arrebatou. Arrebentou, também. E fiquei mais lenta. Atenta para
reter o pó de ouro abrigado entre um verso e outro. Para não desmanchar a
tipografia quando a água tomasse conta de tudo.
Ari Sacramento me libertou do
medo de afogamento no desconhecido mar
da análise literária, pela leitura afetiva que fez do livro. Eu sei escrever e
ler, não domino as teorias. Ari, que sabe nadar em todos os estilos e nos
lugares mais fundos do mar, me autorizou a tornar pública a ebulição das águas
oceânicas deste livro no Rio Doce que me habita. Rio destruído pela Samarco nos
Gerais de minha Minas sem mar.
“Estudo marinho” é um poema que
li dez, vinte vezes. Não para “entender”, como costuma ocorrer com boa parte da
poesia contemporânea que me cai às mãos, mas para entranhar e degustar cada verso. Porque na poesia de
Lívia Natália, que mora nas pedras negras, “a água se encharca nas palavras”.
Porque é uma poesia que nos convida a sermos também “Orixás Didés” e nos
banharmos no nosso próprio mistério.
Nós, que quando lemos boa poesia,
somos tentadas a poetar também. E que nos perdoe a poeta, porque sua poesia
“faz as tardes se emanciparem da gente”.
Em “Sometimes” o vento se
movimenta e pobre da voz lírica, pois é toda feita de água. Do lado de cá sou
feita das pedras que Lívia Natália se ocupa em cantar. Mas toda pedra um dia
foi água e aí reside sua poetação.
“Imitação” é um poema de que discordo
no início e com o qual concordo na conclusão. Diz a poeta nos primeiros versos:
“A palavra não tem mesmo antes: / nada de seu esboço calmo flutua no ar”. Penso
que o antes existe e se manifesta na busca da palavra precisa, que é também o
depois, a reescritura.
A concordância vem ao final, no
que considero a reafirmação Drumoniana de que “lutar com as palavras é a luta
mais vã”, diz Lívia Natália: “As palavras afirmam o que mesmo são: / sombras de
pássaros”.
Em “confissão”, a idéia dos
limites da palavra se apresenta novamente e cala fundo em mim: “Nem tudo o que
choro, / pode ser transmutado em poesia”. Sim! Viver é maior do que escrever.
Sobre “Quadrilha”, o poema censurado por pressão da “bancada parlamentar
da bala” da Bahia, escrevi uma crônica inteira, publicada aqui. Lá, escrevi: “mesmo o poema de amor corta, pode ser
dilacerante e pode também agredir muito a quem orienta a vida pelo desamor,
pelas armadilhas e pela luta política menor”.
Vejamos o que a poeta escreveu em Quadrilha. “Maria não amava
João. / Apenas idolatrava seus pés escuros / Quando João Morreu / Assassinado
pela PM / Maria guardou todos os seus sapatos”.
Ficou patente a reedição da censura a partir daquele 14 de
janeiro de 2016, à medida que o governo baiano retirou das ruas, na calada da
noite, um poema de amor e crítica social, em atendimento às reclamações e
articulações espúrias de militares inconformados com a exposição de sua carne
viva que aperta o gatilho e extingue o corpo negro.
Com alguns poemas me identifico mais, outros
menos. Com poucos não me identifico, mas nada é raso ou “de plástico” (estética
pela estética), para parafrasear outro poeta, Ni Brisant. Isso é o que fica.
Com a delicadeza dos “poeminhas
de amor sem enfeite nenhum” me identifico muito. É quando gosto mais da poesia
de Lívia. Quando fala de amor. Do amor vivido, liricamente experimentado no
corpo.
Corpo que luta para existir e ser
respeitado e por isso, muitas vezes, se perde de si e do amor. Só se
reconhecendo na (reduzida) luta pela sobrevivência. Na resistência.
E a poeta nos redime ao nos
lembrar que “mesmo que tudo em nosso vôo anuncie o exausto das horas, para
sempre seremos pássaros. Para isto nascemos”.
O poema que encerra o livro,
“Cura”, me remete ao motivo de ter buscado o “Correntezas e outros estudos
marinhos” para sobreviver a um mar de detritos produzido e espalhado por
ratazanas perigosas e repugnantes: “O tempo, como um cão, / cura as feridas na
saliva dos dias”.
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