Sobre-viventes! de Cidinha da Silva

Por *Pollyanna Marques Vaz
Em 2006 ao fazer minha primeira leitura de Cada Tridente em seu lugar e Outras Crônicas (Instituto Kuanza, 2006) em um único fôlego, sentada no centro de Goiânia, pensei “então literatura pode ser assim? Escrever pode ser assim? Estas pessoas podem estar nos livros…” Hoje com a chegada de Sobre-viventes! (Pallas, 2016) sexto livro de crônicas e nono livro da escritora, prosadora mineira Cidinha da Silva, também autora do primeiro livro, tenho certeza que definitivamente literatura é assim, escrever pode ser cada vez mais assim.
A sensação que a leitura de Sobre-viventes! causa poderia ser descrita como uma onda que se quebra na gente, mas como sou da água doce e tenho mais familiaridade com as águas daqui, a metáfora será cachoeira após época de chuvas, percurso de queda d’água forte e volumosa que refaz as margens.
650x375_cidinha-da-silva_1634279Começa com as águas calmas, temas cotidianos, a superfície da água é parte pequena do todo, do fundo e tudo que há além do visível, os mergulhos no cotidiano expõem as cenas habilmente recortadas assim como grandes fatos trazidos junto a análises certeiras. Essas cenas algumas vezes trazem o ridículo de nosso tempo como em “Mundo dos aplicativos”, outras vezes somos enredados, levados pela correnteza, a crônica “O dia em que William Bonner chorou” é certeira neste sentido, a narrativa nos envolve, sabemos que haverá um desfecho, mas deixamos nos levar e quando ele finalmente chega nos surpreende e nos sacode.
Estas águas se avolumam cada vez mais, batem nas pedras, se revoltam, voltam diante das dificuldades e abrem caminhos, é luta diária, é a revolta de cada denúncia, cada racismo. No cotidiano, na mídia, nas relações pessoais, nas instituições, na permanência da estrutura branca, masculina e heteronormativa no poder. Estando presente em todo livro o racismo, assim como machismo e a homofobia são especialmente abordados nesta parte. Aqui também as cenas são recortadas com precisão e concisão, é o racismo de todo dia presente em “O livro de recitas de D. Benta” e em “É só alegria”. As conquistas e as contrarreações relatadas no campo da diversidade sexual e sua representação na mídia aparecem em a “A heteronormatividade pira!” e de quebra ainda são rebatidos pelo menos dois mitos sobre mulheres lésbicas e bissexuais. Há também as cenas e vivências da própria escrita como em “Profissão de fé” e“Para não dizer que não falei de flores”, esta última começa com uma menção à Alice Walker e ao lindo “Vivendo pela Palavra”, atravessa outras referências na questão racial, como os médicos cubanos e Joaquim Barbosa e volta-se sobre o escrever crônicas e seus temas:
A falta de assunto, matéria de tantos cronistas, não me afeta. Ao contrário, a movimentação subreptícia dos racistas como reação a cada pequena conquista, a cada ameaça de ampliação do horizonte negro, me dá uma preguiça, uma letargia e, como Walker, chego a querer não mais escrever sobre esses temas. Meu tempo para eles tem se esgotado. Eis que encontro um cego atípico e ele me dá um sacode.”(p.33)
imagesA crônica vai da ironia ácida a imagens cheias de lirismo, movimento presente em vários outros momentos do livro. Aparecem também dois ícones negros, Emílio Santiago e Tim Maia, figuras presentes em outros momentos nas crônicas de Cidinha.
Ainda nesta parte, onde as águas batem cada vez mais fortes nas rochas e são reviradas até o fundo, estão as crônicas que doem, apertam a parte já dolorida pelos racismos, crônicas como  “125 anos de Abolição e eles gritam mais uma vez que o poder é branco!” que retrata o absurdo da suspensão dos editais destinados a artistas e produtores culturais negras e negros e  “Os velhos se vão, o velho grita”, doem aquelas histórias antigas como doem os extermínios de hoje.
Com “Antologia do quartinho de empregada no Brasil”, que traz a arquitetura racial de nossos espaços e a PEC das Domésticas, começa o salto das águas. Não é queda, é voo, a liberdade de seguir adiante, avolumada e cheia de força, de energia, sobrevivente que seguiu adiante, por cima das pedras, das dificuldades, com as referências de quem antes, agora e depois por vários caminhos, militância, arte, vida e obra seguiu adiante e se tornou volume nas águas para que também consigamos. Ponto incrível deste salto, onde percebi que estava em queda livre foi com “Assata Shakur e Nhá Chica”, resistência, afago, nas palavras da autora:“Se for preciso, a gente descansa a pena de Nkossi e faz o xirê do fogo. E se cair, a gente cai de pé, atirando, como Assata Shakur”. “Distinções entre abolição da escravidão e racismo” é aula sobre as dinâmicas das denúncias de racismo que precisamos todas e todos aprender. “Empresa Familiar” e “Voe, Velho Madiba, espelho da liberdade!” nos alenta, “Um capítulo das manifestações de junho” e “Será a volta do monstro?” nos inflama.
Quando terminamos o salto estamos em águas que moldam, que batem e esculpem as pedras, constantemente, são de novo as crônicas relacionadas a episódios do país eivados pela questão racial, a comparação de Joaquim com capitão do mato, o episódio do sorteio da Fifa que preteriu Lázaro Ramos e Camila Pitanga, a teocracia e a dificuldade de implantação da lei 10.639 e em “Sobre-viventes” o extermínio da juventude negra. Depois chegamos à calmaria de águas renovadas, lugar de onde se olha para trás e se observa, o cotidiano na superfície que de novo adivinha o fundo e continua, continua, como águas em movimento que são.
Sobre-viventes! se liga às outras obras da autora em especial Oh Margem! Reinventa os Rios!(Selo do Povo, 2011) e Racismo no Brasil e Afetos Correlatos (Conversê, 2013) nos seus temas principais, o cotidiano, a multiplicidade, o olhar aguçado de análise, as interconexões do que acontece aqui e acolá e principalmente as relações raciais, as manifestações do racismo e de outras formas de exclusão. Não restringindo a obra a um tempo ou finalidade, ela é propícia nestes tempos atuais onde sobram fórmulas prontas de explicação. Com ótica racializada e generificada as crônicas trazem análises com mais elementos e mobilizam outros atores, não só os que comumente tem “direito”, e meios, para falar.
O livro consolida o estilo da autora, os relatos com ironia, humor, acidez, a famosa navalha citada pelos apresentadores do livro que aparece, no trabalho com a linguagem, em criativas expressões como “cachorros contemporâneos” e “afro-surtada”. Refina a arte do estilo conciso que se abre, tece um pedacinho de vida, expondo, analisando e confiando na nossa inteligência que vê e percebe o resto. Esse aspecto é abordado por Eduardo Oliveira no posfácio do livro:
“Faz literatura banta, universalizável desde seu lugar de pertencimento. Cria seu próprio modo de expressão. Constitui seu universo. Escolhe suas referências. Diz com o estilo o que não se pode dizer com a frase. Ultrapassa o dito com o dizer. Para mim, isso é literatura. Dizer para além do dito. Intencionalmente ocultar para revelar. Revelar ocultando. Nesse jogo, deslinda-se o humano.”(p.128)
Quando li Cada Tridente em seu lugar e Outras Crônicas me encantava a multiplicidade e complexidade presentes nas personagens, eles seguiram de forma diferente o riscado da vida. Sobre-viventes! está cheio desta multiplicidade, cheio de sobreviventes destes tempos e de outros também, que o tempo se verga e comporta diferentes nestas crônicas como ressaltado pela prefaciadora do livro. E muito mais que isso está cheio de voz, voz que está mais ampla nos temas, na linguagem e na estruturação. Esta começa com um lindo prefácio, se desenha e nos leva tal como cachoeira, começa calmo, passamos por águas revoltas que lutam com as pedras, fazemos o voo e depois voltamos novamente a calma e finalizando com um ótimo posfácio.
Tenho um gosto pessoal pelas crônicas de Cidinha que trazem mais lirismo, pouco presentes neste livro e que talvez não coubessem no rumo que tomou esta obra, porém, valem a pena ser citadas e conhecidas. Cidinha, no início do Tridente cita Exu Tranca Rua “O caminho é quando ocê escolhe uma estrada pra seguir e chegar no seu lugar”, Sobre-viventes! e a obra da autora tem seu caminho certo na literatura.
*Pollyanna Marques Vaz, 31 anos, goiana, negra e lésbica, estudante de Letras da Universidade Federal de Goiás. Publicada no blogue Margens 




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