O cinema de palavras de Cidinha da Silva
Por Ni Brisant
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Literatura é quando uma história nos convence de que a realidade pode ser outra(s), algo acima dos sonhos e das mazelas cotidianas. Não uma esperança convicta e anunciada, mas uma rachadura no muro de uma rua sem saída – para alguém que precisa chegar do outro lado. No entanto, literatura não é só isso.
Cidinha da Silva chega ao seu nono livro com o vigor e o ritmo próprios de quem já viu demais, sentiu muitas e não tem linha nem tinta para desperdiçar. Não cabem panfletos ou quebrantos. Vale mais caminhar e propor pistas de outras histórias: horizontais, obviamente.
Sobre-viventes é fertilidade criativa e crítica. Tocando em questões raciais, políticas e de gênero sem cair no mingau ralo do discurso pronto, das obviedades calcificadas. Narrativas de dentro.
Os personagens são palpáveis, são gente, não bonecos representando instituições – como se tornou comum ler por aí. Não se trata de crônicas produzidas para agradar grupos. É o que precisa ser dito. Menos dedo na cara e mais desafios à reflexão, propositivo. Do nojo à simpatia, causam os sentimentos mais complexos. Indiferença é que não. Aí está o encanto maior, a gente lê como se assistisse. E, naquele instante, quando você pensa que flagrou o ideal do livro, Cidinha te põe pra catar cavaco, revela a imensidão de seu repertório, capacidade de subverter e manusear a língua (como em Setoró, por exemplo).
O leitor não é testemunha, é cúmplice. Real como o agora (sem ser vulgar), cada crônica tem um coração como matéria-prima. Ora pelo afeto, ora pela sangria. Extraídos de situações convencionais, como novelas, transportes públicos, redes sociais e noticiários, os casos passam pelo filtro da autora e deixam a suspeita-sensação de que aquelas personagens são todas partes de nós.
Não por acaso, o título permeia e amplia os sentidos de todos os textos do livro. Com fôlego e parágrafos mais longos, as crônicas que denunciam violências (em geral) trazem um olhar jornalístico mais apurado em detrimento da poesia, que caracteriza as de cunho narrativo. E como preservar o lirismo em meio a tanto horror? Pois é, o texto que mais utiliza recursos poéticos se chama A Guerra. Cidinha da Silva recorre o tempo todo às memórias de pessoas que tiveram (e/ou têm) o exercício pleno de suas humanidades negado. A autora não entrega tudo, muitas vezes prefere deixar o caso suspenso – como quem diz: “Receba. Você que continue, se quiser...” Por isso é necessária uma leitura dedicada para perceber os silêncios destas memórias femininas e negras – sobretudo.
Se algumas crônicas permitem a vastidão da subjetividade, por outro lado, outras explicitam uma posição definitiva em defesa de lutas ancestrais. Sua fala em O leilão da virgem e a fita métrica é emblemática e ecoa: “Eu juro a vocês, seria mais feliz ao falar de flores, amores e pássaros, mas esse pessoal não nos deixa criar em paz.
Um livro atento às emergências e contradições do nosso tempo. É uma trovoada neste aquário de literatura marginal. Dialogando com sentimentos imprevisíveis, toda uma tradição de resistência através de traços, cantos, sabores, sons, cores etc, Sobre-viventes não inventa a roda da literatura, mas faz com que ela gire com mais diversidade e reticências.
Mais ou menos como diria Criolo (artista citado no livro), saber a hora de parar é para gente sábia. E a julgar pela qualidade literária que vem apresentando nestes anos todos, a história de Cidinha da Silva não conhecerá fim.
*Ni Brisant é educador e poeta. Baiano residente em São Paulo, lê e escreve para ter no que acreditar.
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