Leitura atenta de Marilene De Sousa Coelho sobre Um Exu em Nova York



Com Um Exu em Nova York fui a minha primeira casa, por que não, a de todas e todos.


Primeiramente, peço licença, a Cidinha da Silva, para comentar o seu livro Um Exu em Nova York, seu primeiro livro de contos. Por que Um Exu em Nova York? Por que um Exu em uma das maiores metrópoles/Estado mobiliza a autora?

Cidinha dialoga e possibilita que cada conto ofereça-nos um encontro com tradições, ancestralidades, religiosidades e saberes africanos e nas diásporas.

Ao ler o conto I have shoes for you eu fui tomada pelos caminhos abertos à autora por exu e aproveitei o caminho concedido. A partir entendo que exu foi solicitado e saudado para liberar a autora a dialogar com leitores e leitoras sobre as qualidade de cada orixá e inquice em qualquer lugar. Porque não, Nova York com seus quase 800 idiomas, alguns nem documentados.

Cada conto é uma forma de tradução cuidadosa de panteões yorubá e angola-congo devido ao saber e conhecimento da autora. Saber que consagra e facilita os entendimentos, como sempre fez em cada uma de suas crônicas e poesias.

O desenvolvimento de cada narrativa é poder eminente. É poder eminente quando a leitura produz movimentos e imagens como se atuassem propositalmente para tocar nossas vidas num dado momento da história presente.

Como é exu, a comunicação evidencia o protagonismo. Convida e autoriza a pensar caminhos. E como não posso tratar dos conceitos entre contos e crônicas e técnica de escrita das narrativas aqui dadas, descrevo um breve relato das sensações que vivo diante de suas escritas. Nas leituras, eu vivi um contínuo encontro com ancestralidades africanas e suas manifestações e perpetuações na cotidianidade diaspórica.

Suas narrativas tatuam a pertinência ancestral. Fica mais evidente o conceito da contemporaneidade das escritas na contínua recuperação conceitual das tradições, na reinterpretação do passado, no primor da estética pela rítmica das histórias e formas de senti-la. Passado e presente requalificando novos entendimentos para pensar as estruturas sociais afro centradas. Elas demonstram as transformações raciais e dialogam com potências imaginativas que não são dadas pela sociedade de classe e racista, mas promove caminhos a percorrer.

As violências e o amor dispostos nas narrativas retém o pensamento e a prática contra a distopia e o terror desde uma estética de criação literária que viabiliza uma entre tantas leituras do mundo.

A contemporaneidade da autora expõe-nos africanidades em dinâmicas sociais diversas, aqui ou em Nova York, nas ruas de uma comunidade, num terreiro invadido, diante de oferendas aos orixás; num velório; na casa da amante; nas paqueras em algum point cultural da cidade; numa encruza.

Cada leitura parece desafiar a imaginação diaspórica autorizando estéticas complementares ao livro. Do toque no livro físico quando inspira diversas sensações, à capa e ao título eu descobri que estava diante de uma obra de arte para meu deleite. Estimula a imaginação afrofuturista. Cheguei a roteirizar um curta metragem motivada pelo saber, poder e movimento dos orixás em todas as cenas que as narrativas admitiram, seja nas vozes de atrizes como Naruna Costa; em recitais; nos teatros; nas ruas e praças; nas festas e bares; nos lugares e internamente.

Cada vez que recebo uma nova investida comunicacional da Cidinha eu sei que estarei diante de uma releitura estética do mundo sob um olhar atento para a sociedade que nos circunda e suas ancestralidades.

A estética produzida promove a sua filosofia da escrita. Atualíssima toma temas caros como é o amor e a dor, discriminações, vida e mortes em territorialidades definidas, a diáspora.

Diante dessa perspectiva hoje eu vou comentar três contos. Comentar o que sinto ao tocá-los.

I have shoes for you (p.13-16) é uma saudação de Exu aos leitores e a abertura para a leitura funda deste e aos demais contos. Uma saudação gerada pela inquietude, pelas indagações, pelo dialogo no caminho. Nos meus sentidos, uma saudação e reverência a Exu pela autora, aquele que deve ser saudado e alimentado antes de se iniciar qualquer cerimônia das religiões de matrizes africanas. Este conto é um pedido para abrir os caminhos das narrativas vindouras e das energias necessárias para prosseguir, receber os retornos e dar novas vidas ao exposto, às respostas a eles. Percebe-se, não foram poucas as tratativas para receber a permissão para produzir e oferecer seu saber. São os caminhos das dádivas - dar e receber - e os percursos dos diálogos, das performances, das percepções possíveis, dos direcionamentos e as qualidades das decisões a tomar pela multiplicidades de possibilidades que a criatividade da autora oferece. Como uma das qualidades da autora que é este saber a serviço das africanidades na contemporaneidade. I have shoes for you é a feitura de um ebó para agraciar quem vai passar por outras 18 oferendas a vida e aos poderes da ancestralidade no dia-a-dia.

Kotinha (p.21-23) mobiliza em mim questionamentos sobre os próprios poderes inerentes às religiosidades de matrizes africanas nos enfrentamentos das violências históricas e conjunturais que sofrem pela intolerância. Este conto evoca a vontade por resoluções fora do escopo legal jurídico que assistimos em 2018 sobre as religiões de matrizes africanas julgadas pelo STF. Resolveu ela mesma, Kotinha, e os seus. Resolveu nossos inquices a desocupação do terreiro invadido para onipotência da tradição judaico-cristão e a negação sistêmica do outro como forma de apagamento do passado. Salve makota mirim.

Sá Rainha (p.71-73) é a transcendência aos tempos ancestrais neste mesmo lugar de hoje. As conduções das vidas e das mortes das gentes negras nas formas genocidas do terror sobre o seu povo. A morte dos jovens, a transcendência de Sá Rainha depositada a quem entenda e acolha os sinais diante de seu tempo. Sábia, como quem conhece seu tempo.

O racismo instituído historicamente sequestrou pessoas e levou-as a adaptações na diáspora. Assim, é irremediável a condição de comunicar a vida nas distintas manifestações que vivemos, intuímos e criamos para nosso bem estar contra o Estado de exceção que persiste contra nossa existência como mulheres e homens negros.

A leitura de Um Exu em Nova York reúne minhas ficções e realidades na perspectiva de continuidade na diáspora como “restam o bastão e a coroa” de Sá Rainha, “a espera de alguém”. E de cara, agradeço pelos reencontros dados.

Zaratempô.

Marilene de Sousa Coelho é Cientista Social e graduanda em Direito
São Paulo, 08 de janeiro de 2019

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