Notas sobre um processo de criação literária, ao poeta Rique Aleixo

Querido amigo, quando convidada a escrever este texto para a revista “Matriz”, sobre arte negra (especialmente artes de performance) a ser lançada durante o IV Encontro de Arte de Matriz Africana, em Porto Alegre, RS, neste dezembro, imediatamente, pensei em você e em nossas iluminadoras conversas. Lembrei-me daquela tarde de chuva no LIRA em que eu tomava chá de erva-cidreira e você um cálice de cachaça, enquanto registrava o papo em seus arquivos audiovisuais. Falamos sobre tantas coisas: filhas, família, Belo Horizonte / Velhorizonte e muito sobre criação literária. Meses depois, irrompi em sua casa, via Grambel, para ouvir sua opinião de mano mais velho a respeito do dilema pessoal que vivia: para enfrentar apertos financeiros, precisava voltar o mercado formal de trabalho e interromper o ano sabático auto-financiado de dedicação exclusiva à literatura. Exclusividade aqui é eufemismo para o trabalho remunerado autônomo que desenvolvia à época, diferente da operária do intelecto que voltei a ser. E você me disse uma daquelas frases elegantes e inspiradoras: “Cidinha, crie um lugar no mundo para aquilo que você faz. Não existe um lugar pra gente, é preciso criá-lo. Há 31 anos venho fazendo isso com minha arte. Invento um lugar de existência para ela”. Queria te contar que estou criando meu lugar no mundo, Rique. Aproveito para agradecer pelo lampião. Não é um caminho propriamente duro, de sofrimento, não, mas é um caminho trabalhoso, armadilhoso, para parafrasear o Rosa. Meu primeiro passo tem sido compreender e assimilar minhas mudanças de perspectiva no seguinte trajeto: ativista / artivista / artista. Lembro-me de um comentário irônico feito por ti sobre minha definição como artivista, postado no Jaguadarte : “Ela se diz artivista”. Não pense que passo incólume às suas ponderações. Já posso me definir como artista, Rique (e nem estou falando baixinho). Descobrir e encontrar a mim mesma como artista tem redimensionado meus sentidos de Sul e Norte e, por vezes, a bússola orientadora se desgoverna, acuada pela premência do trabalho operário-intelectual de sustentação do cotidiano de consumidora e contribuinte. A descoberta também tem me levado a consolidar as distinções entre o trabalho da alma - a literatura -, e o trabalho que precisa ser feito. Dentre as armadilhas referidas está a distinção entre a chave e a fórmula. Explico: Drummond, em algum momento da vida poética, disse que os escritores precisavam ter a chave para gerar literatura. Muita gente tem a fórmula, não é? Fórmula para seduzir o leitor; para atender às exigências mercadológicas das editoras; para emplacar livros nas compras institucionais do Estado; para vencer certos concursos viciados; para agradar sem comover, sem divergir, sem revirar, embora de maneira competente. Que Zambi me proteja da tentação da fórmula e me conceda a graça da chave. Embora seja uma mulher de Kissimbi e manifeste muito da minha fertilidade no trabalho, não quero parir literatura como uma coelha e assim, fazer coro a certos autores: “Já escrevi tanto livro que nem sei mais...” Naquilo que me cabe, sou prolífica, é característica de personalidade ou de essência, mas não almejo as cifras coelhais. Desta forma o ofício de escrever perde a magia, assemelha-se àquelas pessoas namoradeiras que esquecem (ou confundem) as nuances do gozo da dita pessoa amada. Penso que escrever literatura é caminhar na estrada do tempo, às vezes sobre o fogo. Não sei se isso vale para qualquer arte, mas se amálgama ao meu modo de oficiar a literatura. Outro ofício me socorre para compreender o meu, o de quem faz pão. Um padeiro escolhe bem os ingredientes e instrumentos de trabalho para produzir o melhor alimento. Domina a técnica para preparar a massa. Sova a massa, macera até deixá-la no ponto de assar. Porém, antes de escolher a temperatura adequada para a fase final da feitura, a massa descansa para crescer. Depois recebe os detalhes de acabamento. E quando vemos aquele pão bonito, corado e delicioso, não imaginamos o trabalho investido para prepará-lo. Escrever literatura é como fazer pão. Lembra-se quando trocávamos e-mails às cinco da manhã, Rique? Pois é, continuamos madrugadores, não é? Acho cômico o susto de algumas pessoas quando conto que acordo muito cedo para escrever e procuro fazê-lo todos os dias da semana, naquele horário, antes de sair para o trabalho no escritório. Parece que, no entendimento delas, a disciplina mata a criatividade. Engano bobo. O que faço é dedicar a mim mesma, as melhores horas do dia. Lamento, apenas, não conseguir estendê-las. A disciplina me organiza e estrutura. O trabalho diário no blogue me apóia muito nesta matéria. Adélia Prado critica a pretensão do artista ao descrever o próprio processo criativo. A criação estaria no campo do divino e não nos seria dado retratá-la. Como mulher mais jovem do que ela e distante da sabedoria Adeliana, ouso apontar uma característica ou outra do meu processo, tudo interligado à liberdade que a literatura me oferece. A busca da disciplina é uma delas, já disse. Gosto de manter meus arquivos organizados, embora minha mesa de trabalho (em casa) não o seja. Gosto de ter cadernos e cadernetas bonitos para fazer anotações, canetas de várias cores e lápis apontados. Sempre que possível, uso protetores nas canetas e lápis, como um carinho aos dois calos desenvolvidos no fura-bolo, nos tempos em que o computador não era o instrumento privilegiado para escrever. Antes de mergulhar na escritura de um novo texto e mesmo durante o processo, tenho fome visceral de leitura. A música também me acalenta, além de levar a buscar a incisão do verso para minha prosa, a liberar emoções teimosas, remosas. A música faz fruir, enfim. Reescrevo uma frase incontáveis vezes até que a leitura oral do texto tenha o ritmo, a cadência e a harmonia pedidos pelo meu ouvido. Não dou um trecho por terminado enquanto a sonoridade dele não me agrada plenamente. Faço marcação de zagueira taticamente aplicada às muletas do texto criativo. Aspirantes a estrelas, os “quês” e “mas” tentam roubar a fluidez da escrita, principalmente na literatura para crianças e adolescentes. Não abro mão das leituras críticas e das consultas aos dicionários antes de publicar. Elas me trazem para a terra e partindo da terra vôo com mais segurança. Você se lembra, Rique, há uns vinte anos, num seminário sobre cultura negra no Brasil e nos EUA, realizado em Belo Horizonte, você ou nosso amigo Edimilson - não me lembro quem foi -, citou a resposta de Wole Soyinca à indagação sobre sua negritude e o pioneirismo africano na premiação do Nobel de Literatura? “Um tigre não anuncia sua tigritude, ele ataca”. Lembra? Estou no ataque, mon ami. A retaguarda da palavra está garantida pelos N’kices, pelos ancestrais e pelos mais velhos. Os mais novos me puxam pela mão e sigo, resoluta, o caminho do meu tempo.

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