As duas vidas de Vinícius Romão
Por Cidinha da Silva
A primeira vida é de um rapaz de
família, trabalhador, pacato, cercado de amigos negros e brancos. Um homem
jovem, para quem, ser negro, talvez vá pouco além da alegria e do orgulho de
uma bela coroa Black Power.
A segunda vida é a do sujeito descrito,
mas, tratado como um negro qualquer pela polícia. Toda singularidade se esvai
como bolha de sabão colorida diante da perseguição dos estereótipos.
Por um lance simples de sorte e provável
proteção espiritual, Vinícius Romão de Souza não foi abatido como Cláudia da
Silva Ferreira. Em comum, a negritude de
ambos, o pertencimento à mesma comunidade de destino.
O racismo é o que menos se
evidencia nas histórias de Cláudia e Vinícius. A mulher trabalhadora, mãe
zelosa de filhos e sobrinhos, sucumbe à condição de “a arrastada”. A mídia não
se dá ao trabalho sequer, de dizer seu primeiro nome, Cláudia! De Vinícius
exploram a juventude, os sonhos, a família forte que supera os sofrimentos das
perdas precoces, a cabeleira Black Power, atributos que o individualizam,
emprestam-lhe uma história particular que não é respeitada, por isso, ele é “o
injustiçado”. Contudo, o que pegou
mesmo, quer para a prisão de Vinícius, quer para o assassinato de Cláudia, foi
o fato de serem negros desprotegidos, expostos à sanha racista e ao humor
sórdido de policiais, que, para os que não querem entender, prendem e matam as
pessoas negras a esmo, como insetos ou vermes.
Depois de sair da prisão, em
busca de recuperar a primeira vida, Vinícius afirma que nunca fora vítima de
racismo, sempre foi respeitado. Vítima, não. Isso é certo. Vinícius é alvo de
uma sociedade que, estrategicamente, refuta a existência do racismo dirigido aos
negros, para garantir os privilégios dos brancos; que enlouquece os que atestam
sua virulência, pois querem provar a eles que o que julgam ser racismo é apenas
a vida inexorável do negro (não por acaso conveniente para manter intactos os
louros da branquitude).
Vinícius terá se sentido respeitado
todas as vezes que levou baculejo da polícia? Ao voltar da universidade, do
colégio, talvez até da escola primária com uniforme escolar. Porque é assim que
homens e meninos negros são tratados! Ou não? Terá se sentido respeitado a cada
vez que uma mulher protege a bolsa ao sentir sua aproximação? Ou nas inúmeras
vezes em que foi ridicularizado por sua compleição física de descendente de
africanos?
Para infelicidade dos negros, a
história individual não tem evitado sua morte, seja física, seja simbólica.
Mas, Vinícius, como a maioria dos seus, foi levado a dormir dentro dessa casca
de ovo, até que a segunda vida a quebre e surja de dentro um cheiro
insuportável de coisa podre que toma conta de todo o ambiente. Então, mesmo não
havendo como fugir, disfarçar, negar o óbvio, a primeira vida será evocada
outra vez, na ilusão de que possa proteger as pessoas- alvo da voracidade do
racismo.
E a trilha viciosa se repetirá
até que as duas vidas se encontrem e se fundam. Até que se compreenda que todas
as vezes que um negro sofre discriminação porque é negro, trata-se de uma
agressão coletiva. Desse modo, não existe um negro que nunca tenha sido discriminado.
A repetição ocorrerá até que se
entenda a alteridade como direito que não exime a população negra do
pertencimento à mesma comunidade de destino. Os “negros especiais” não existem,
apenas
negros que contaram com mais sorte ou acessos ao longo da vida. O povo negro
será tratado como negro, descendente de escravizados as vezes sem conta em que
o poder branco se sinta ameaçado. É a regra do jogo da opressão racial.
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