O haitiano assassinado no Sul e o besteirol da ‘imigração africana’

Por Cidinha da Silva



Postado em 20 out 2015
O haitiano Fetiere Sterlin
O haitiano Fetiere Sterlin

Impressionante a forma como o racismo institucional desdenha da inteligência de quem conhece os modos de operação do racismo em profundidade. É o que se observa na campanha recente do Ministério da Justiça contra a xenofobia e em apoio aos novos imigrantes do século XXI.
No primeiro momento lançaram um cartaz com um garoto negro muito bonito, Matheus Gomes, com os seguintes dizeres: “meu avô é angolano, meu bisavô é ganês. Brasil, a imigração está no nosso sangue”.
Matheus tem 18 anos, o cartaz nos informa também. Se fizéssemos um cálculo rápido e bastante superficial, poderíamos pensar que seu pai teria 40 anos; seu avô 60 e seu bisavô 80. O avô teria nascido em 1955 e o bisa em 1935. O bisa fora criança então em pleno período de vigência do Decreto-lei 3010 de 1938 que exigia a presença do estrangeiro solicitante de visto (o pai do bisa se ele tiver vindo para o Brasil quando criança) frente ao cônsul de plantão para que este verificasse se a pessoa era branca, negra, ou tinha alguma deficiência física. As duas características últimas impediam a concessão do visto.
Cabe perguntar se nesse período (1935 a 1955) existia representação brasileira em algum país africano. No Gana, especificamente. A Assessoria de Comunicação do Ministério da Justiça, responsável pela campanha poderia ter consultado os arquivos do vizinho, o Ministério das Relações Exteriores, ou do próprio Ministério da Justiça, durante muito tempo responsável pela política de imigração no país, para dar alguma verossimilhança ao cartaz.
O continente africano começa a ser considerado na política externa do Brasil no curtíssimo governo de Jânio Quadros, em 1961. João Goulart (1961-1964) dá prosseguimento ao projeto, estabelecendo representações diplomáticas em Angola, Moçambique e África do Sul, totalmente desarticuladas das lutas de libertação colonial, entretanto. O governo brasileiro da época era afinado com os interesses de portugueses e franceses em África e a condenação ao Apartheid era para inglês ver.
De 1938 a 1948 (período da infância do suposto bisa ganês de Matheus que imigrou para o Brasil), o ditador Getúlio Vargas e setores das elites intelectuais brasileiras acreditavam que o problema do desenvolvimento do Brasil estava relacionado à “má formação étnica do povo” e que isso se resolveria com a entrada de imigrantes brancos. Um reforço à política eugenista que vigorou na segunda metade do século XIX e primeiro quarto do século XX. Assim, pode-se concluir que o bisa de Matheus, se realmente existiu, foi um sujeito atípico no universo de rechaço aos africanos. Possivelmente um sujeito de sorte ou muito boas relações, mas, seguramente, o que aconteceu com ele (a suposta entrada tranquila no Brasil) não era regra para os africanos.
Se querem criar uma peça de ficção, um “besteirol da imigração negra no Brasil”, contratem gente que saiba pensar uma comédia com alguns pilares críveis. Não menosprezem a inteligência da audiência. É feio. Desrespeitoso. E aprendam que, no Brasil, não é possível descolar as pessoas negras do racismo em qualquer período da história deste país, por mais que elas constituam exceção à regra, exemplos de sucesso.
Mas, o que acabamos de ler foi a desconstrução do primeiro ato da comédia do racismo institucional feita pela cronista. Voltando à peça publicitária, no segundo ato, pessoas negras que não estão dormindo, nem comem mosca, reagiram ostensivamente à campanha nas redes sociais. Afinal, a imagem do jovem Matheus Gomes e os dizeres que a acompanhavam, remetiam o receptor à experiência negra no Brasil, que passa pela escravidão, principalmente quando os mais velhos são o foco. E ali, no cartaz, a experiência da escravidão era esvaziada pela suposta imigração espontânea do bisavô e do avô de Matheus, o primeiro do Gana (suponhamos que seja o bisa paterno) e o segundo de Angola (avô materno, para que haja algum elemento lógico nessa árvore genealógica).
No terceiro ato, a Assessoria de Comunicação do Ministério da Justiça, consternada, desculpa-se pela gafe nos termos seguintes: “O Ministério da Justiça pede desculpas se a campanha trouxe à tona a triste história da escravidão. O foco da campanha contra a xenofobia é sensibilizar para enfrentar toda forma de ódio, preconceito, intolerância e racismo, além de mostrar que a sociedade brasileira é composta de descendentes de imigrantes de todas as partes do mundo que ajudaram a construir o país que temos hoje.”
Em outras palavras, as pessoas que reagiram à estupidez do primeiro cartaz da campanha, interpretaram mal a boa intenção dos que a formularam. Vamos aqui fazer um acordo entre pessoas que têm massa cinzenta, uma equipe de comunicação que pede desculpas porque sua campanha de marketing trouxe “à tona a triste história da escravidão” pode rasgar o diploma, pode voltar para o ensino médio, para as aulas do cursinho pré-vestibular, porque considerar o processo de escravidão que vitimou 6 milhões de pessoas africanas e seus descendentes, que durou 350 anos, como uma singela memória triste é rasteiro e racista demais.
ministerio

No quarto e derradeiro ato, provavelmente em resposta à reação pública que hostilizou a campanha, o Ministério da Justiça muda o tom. Apresenta um preâmbulo ao cartaz que diz: “O Brasil é contra a xenofobia e repudia toda forma de racismo, preconceito e ódio. Participe da campanha e faça seu post:www.eutambemsouimigrante.com.br #EuTambemSouImigrante #XenofobiaNaoCombina
Acrescenta ao cartaz de Matheus Gomes a hashtag #EuTambemSouImigrante. Ou seja, a segunda versão do cartaz leva-nos a pensar que o texto da peça é uma autodeclaração de Matheus Gomes. Ah… não é por nada, não, mas há que haver marqueteiros melhores à disposição no mercado. As emendas só pioraram o soneto.
Enquanto o pessoal brinca de formular campanhas inócuas, Celina Bento Mendonça, uma angolana grávida foi abatida a tiros enquanto comia acompanhada por compatriotas em um bar no centro de São Paulo, há 3 anos. Vários haitianos foram alvejados com tiros na mesma cidade, em filas para emprego ou para se alimentarem. Há pelo menos dois anos isso vem acontecendo. E olha que São Paulo é a única cidade que goza de alguma política pública para acolhê-los.
Haitianos não conseguem se fixar no Amapá e em outros estados do Norte do Brasil, territórios pelos quais entram no país. Não são queridos por lá e vagam por diferentes paisagens inóspitas buscando parentes e lugares onde possam se estabelecer e recomeçar a vida.
Fetiere Sterlin, outro haitiano, foi assassinado a facadas por um grupo de homens em Navegantes, Santa Catariana, dia 17/10/2015, por ter respondido a três desses homens que passaram pela rua de bicicleta e o ofenderam verbalmente, mandando-o voltar ao Haiti. Fetiere respondeu aos insultos racistas. Os jovens anunciaram que o matariam a tiros. Buscaram colegas, voltaram em maior número, eram muitos e se dividiram. Dez se ocuparam dele com facas e um grupo menor tratou de agredir sua esposa e amigos com barras de ferro, pás e mais facas.
Somos tratados como tolos e ignorantes por uma publicidade burra e descompromissada. Campanhas publicitárias mal feitas e superficiais (pensam que é suficiente estampar rostos negros bonitos para que as pessoas negras sejam adequadamente representadas) são inoperantes, não fazem cócegas no racismo travestido de xenofobia que mata, efetivamente.
A morte dos imigrantes haitianos é crescente e alarmante. É mais um braço do genocídio da população negra no Brasil e a gente brincando de fazer e remendar cartazes e seus erros históricos grotescos.
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Cidinha Silva
Sobre o Autor
Cidinha da Silva, mineira de Belo Horizonte, é escritora. Autora de "Racismo no Brasil e afetos correlatos" (2013) e "Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil" (2014), entre outros.

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