Para onde caminha a Marcha das Mulheres Negras
Por
Cidinha da Silva
A previsão do tempo indicava chuva
em Brasília, mas a Senhora das Tempestades e o Senhor dos Trovões, donos das
quartas-feiras, seguraram as águas e os raios. Deixaram o Sol conduzir a Marcha
das Mulheres Negras Contra o Racismo, a Violência e Pelo Bem Viver.
Depois de mais de três anos de
mobilização e articulação política, mudanças na data de realização, e muito,
muito trabalho, 50 mil mulheres negras, segundo a organização da manifestação, ocuparam
as ruas da capital federal reivindicando cidadania plena. O ato representou as
negras que compõem 25,5% da população geral, em marcha para amplificar a
necessidade de erradicar os vetores principais que impedem essa plenitude, o
racismo e a violência.
O ritmo cadenciado da Marcha foi marcado
pelos passos firmes de mulheres que brotam do campo e das cidades, das águas e
das florestas, dos quilombos rurais e urbanos, das favelas e palafitas, dos
bairros periféricos, da falta de teto e terra, das ruas. De diferentes idades,
orientações sexuais e religiosas. Foi marcado pelo grito que reivindica a
construção de um novo pacto civilizatório que inclua mais de 50% da população
brasileira, a parcela negra, que tem sido invisibilizada e/ou excluída do alcance
das políticas públicas.
Esta, de 2015, foi a primeira
marcha das mulheres negras brasileiras. A julgar pela garra e determinação das
participantes virão outras, históricas e transformadoras como as marchas pelos
direitos civis nos EUA dos anos 1960; pelo fim do Apartheid na África do Sul
nos anos 1980; contra o racismo, pela cidadania e a vida, no Brasil dos anos
1990 e 2000; pelos direitos econômicos e por um tratamento digno da polícia e dos
poderes constituídos à população negra, nos EUA das primeira décadas do século
XXI; contra o genocídio da juventude negra
brasileira na última década.
A Marcha das Mulheres Negras foi
aberta pelas zeladoras da secular Irmandade da Boa Morte, da cidade de
Cachoeira, Bahia, em mensagem direta e contundente de paz e respeito às
diferenças, principalmente religiosas. Teve uma comissão de frente composta por
Iyalorixás vindas dos quatro cantos do país. Mulheres-símbolo da sabedoria
ancestral africana que há séculos oferece sustentação espiritual e acolhimento ao
povo brasileiro, nos milhares de templos das religiões de matriz africana,
cujas portas têm estado indistintamente abertas a brancos, negros, orientais, a
todos, com generosidade e amor.
Essas veneráveis senhoras
materializam também a voz que exige a laicidade do Estado. O destaque e
visibilidade de sua presença lembra que as casas de asè têm sido atacadas e
destruídas pelo ódio político-racista e pelo fundamentalismo religioso. Seus
filhos e filhas têm sido apedrejados e agredidos de diversas formas. Elas
mesmas têm tido as vidas ameaçadas e ceifadas pela violência dirigida às
matrizes africanas no campo religioso.
A violência contra as mulheres
negras, tema central da Marcha, é demonstrada de maneira cabal pelo Mapa da
Violência 2015. Segundo dados divulgados pela Faculdade Latino-americana de
Ciências Sociais, o número de homicídios contra as mulheres cresce, à revelia
da aplicação da Lei Maria da Penha, principalmente entre as negras. Em 2013, a
cada cinco mulheres assassinadas, três eram negras.
No encerramento da Marcha, os
milhares de mulheres negras que chegaram ao Congresso Nacional foram agredidas
por homens da extrema direita escondidos em barracas de camping, armados com
revólveres e bombas caseiras. Dois deles atiraram para o chão e para o alto,
ameaçaram manifestantes e lançaram bombas, causando pânico e medo. Foram desarmados
e presos, mas não algemados. Um deles, flagrado por fotógrafos de jornais,
sorria cinicamente de dentro da viatura policial, assentado ao lado de um
colega (os ultradireitistas são policiais civis) e fazendo o gesto de
continência militar.
Em alguns hotéis, no dia seguinte,
as manifestantes hospedadas fecharam a conta mais cedo para evitar confronto
com dezenas de ultradireitistas supostamente acampados no gramado do Congresso,
mas, na real, instalados naqueles hotéis. Era mesmo para ter medo, pois esses
são os homens e mulheres que ameaçam deflagrar uma “carnificina” caso suas
barracas sejam retiradas do local, onde só se mantêm por capricho do Presidente
da casa, Eduardo Cunha.
Como parte das atividades
estratégicas da Marcha, as trabalhadoras domésticas,
prostitutas/profissionais do sexo, artistas, profissionais liberais,
trabalhadoras rurais, extrativistas do campo e da floresta, marisqueiras,
pescadoras, ribeirinhas, empreendedoras, culinaristas, intelectuais, artesãs,
catadoras de materiais recicláveis, iyalorixás, pastoras, agentes de pastorais,
estudantes, comunicadoras, ativistas, parlamentares, professoras, gestoras,
entre outras, organizaram audiências públicas na Câmara e no Senado. Nestas, cobraram
posições progressistas e comprometidas dos parlamentares, a exemplo da posição
assumida por parte significativa da bancada de mulheres. Denunciaram que a
atual formação reacionária do Congresso tem atentado, de forma violenta, contra
os corpos, a saúde, os direitos e a autonomia das mulheres negras, por meio da
promoção de discriminações, do ódio e desrespeito aos que diferem e discordam
do fundamentalismo que domina a casa do povo.
A Carta
das Mulheres Negras http://shoutout.wix.com/so/2L4bNw81#/main propõe uma série de ações e orientações para políticas
públicas no campo do direito à vida e à liberdade; da promoção da igualdade
racial; do direito ao trabalho, emprego e território. Direito à terra, moradia
e à cidade; à justiça ambiental, a defesa dos bens comuns e a
não-mercantilização da vida. Direito à seguridade social, à educação e à
justiça.
Para
alcançar o bem viver proposto pela Marcha, a superação do racismo e da
violência dos quais as mulheres negras são alvo, são condições essenciais. Mas,
enquanto isso não acontece integralmente, vão sendo estabelecidas conexões
entre a natureza, a política, a cultura, a economia e a espiritualidade, das
formas possíveis e de maneira holística. Recupera-se assim, o sentido de utopia
para a construção de um mundo, no qual todas as pessoas possam viver com ética,
saúde, direitos substantivos, alegria e dignidade.
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