Saudades da Bienal das Favelas

Foi no final de julho 2007, no Rio de Janeiro, a chapa esquentou e o Circo Voador virou favela. Sessenta comunidades desceram o morro para representar suas artes e vivências na segunda edição da Bienal Favela Festa. Ao longo dos quatro dias (19 a 22 de julho), o evento teve espetáculos de música, teatro, dança, moda, poesia, vídeo, cinema, fotografia e artes plásticas, desfilando diversos estilos e linguagens. Mais de 800 artistas assumiram a cena de uma arte urbana da melhor qualidade produzida nos morros e subúrbios do Rio. Nesta ocupação cultural, artistas criados ou ligados às comunidades subiram ao palco do Circo Voador para representarem e homenagearem a musicalidade do morro. A grande dama, Elza Soares, coroou a festa com o show “Beba-me”, o mesmo apresentado dia 07 de outubro, em encerramento de curta temporada, no belo Auditório Ibirapuera, em São Paulo. Assisti aos dois espetáculos e que saudades senti da noite no Circo Voador. Lá, éramos incontáveis negros e quando a Elza cantou “A carne”, de Marcelo Yuca e Seu Jorge, o morro veio abaixo ou fomos todos para cima e miramos o racismo do alto. No auditório Ibirapuera, no bizz, Elza cantou "A carne" e modificou a letra: "A carne mais barata do mercado é a carne negra / a carne mais barata do mercado é a MINHA carne negra”. Ainda assim, poucos corações pulsaram, vibraram, e a acompanharam. No Circo Voador a gente quase entrou em êxtase (sem ecstase). No Auditório Ibirapuera nem a multiculturalidade discursiva soltou a voz dos paulistanos em louvor a Elza Soares, pois, cantar junto com Elza, nada mais é do que reverenciá-la. A diva ainda insistiu, seguiu o script, e para encerrar o show cantou O Rap da Felicidade, dos compositores cariocas, Cidinho e Doca: “eu só quero é ser feliz, andar tranqüilamente na favela onde eu nasci / e poder me orgulhar / e ter a consciência que o pobre tem seu lugar”. Deve ter se frustrado muito, pois todas as vezes que interrompia o canto e conclamava a platéia - “vocês”... cadê que o povo sabia a letra ou soltava a voz para cantar junto com ela, não havia coro. A classe média intelectualizada costuma interpretar equivocadamente a letra desta música, que, diga-se de passagem, é primorosa – “faço uma oração à Aparecida protetora / mas sou interrompido / tiros de metralhadora” , muito antes de “Tropa de elite”, mesmo do livro. Já ouvi muita gente boa e bem intencionada dizer que a letra apregoa que os moradores de favela se limitem a ela e sejam felizes naquele mundinho. Ledo engano, tosca ilusão. A favela não é um mundinho, é um mundo, muito, muito complexo e o Cidinho escreveu a primeira versão do Rap da Felicidade, depois que o motorista do táxi, no qual ele viajava com as filhas no colo, recusou-se a subir o morro da Cidade de Deus, sua moradia. Ele ameaçou: “então eu não pago”. E o motorista: “tudo bem amigo, não tem problema, mas aí eu não entro”. Cidinho desceu do táxi e subiu todo o morro a pé. Escreveu a letra quando chegou em casa, ofendido, humilhado, esculachado, como dizem os cariocas. Então, quando a Elza canta O Rap da Felicidade para a favela, a favela responde, sente, pulsa. Outros públicos têm gosto variado e se deliciam com “o neguinho gostou da filha da madame / que nós chamamos de sinhá / senhorita também gostou do neguinho / mas o neguinho não tem dinheiro pra gastar”... mas tem um falo poderoso, o microfone, que a diva alisa sem parar.

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