Vozes libertárias de Angola

(Deu no Estado de S. Paulo, por Ubiratan Brasil, 2m 28/11/07) Passado e futuro, infância e formação se misturam em livros de Luandino Vieira e Ondjaki, que vêm ao Brasil revelar mistérios literários de seu país. "A literatura em Angola nasceu antes do país - Alfredo Troni produziu suas primeiras narrativas no século 19 quando a antiga colônia de Portugal só conseguiu sua independência em 1975. Assim, notadamente nos anos 1930 e 40, a escrita angolana se construiu a partir da negação contra o complexo sistema de contradições da sociedade colonizada. Mas o projeto de uma ficção que conferisse ao homem africano o estatuto de soberania surge nos anos 1950, principalmente com José Luandino Vieira e seu A Cidade e a Infância, publicado em 1957 e que ganha agora edição da Companhia das Letras. São dez histórias que apresentam um espaço social e humano especificamente angolano, ou seja, a representação do mundo subdesenvolvido dos musseques (bairros pobres), onde o autor, embora nascido em Portugal, foi criado. O impacto vem da ruptura da linguagem, da desestruturação do português colonizador para a estruturação de uma nova língua, a oral. Para isso, a memória tem papel fundamental, o que também marca a literatura de outro talento angolano, Ondjaki, representante da nova geração, pós-independência. É o que se observa em Os da Minha Rua, que a Língua Geral lança nesta semana. Aqui, o autor-personagem revela as descobertas da adolescência somadas às despedidas de tudo o que remete à infância. Fazem parte desse universo assuntos e imagens tão diversas como o primeiro beijo, a parada de 1º de maio, uma piscina de coca-cola e a novela brasileira Roque Santeiro. Luandino Vieira e Ondjaki vêm ao Rio em novembro, quando participam de eventos sobre a literatura de seu jovem e rico país. Sobre essa vinda e o novo lançamento de A Cidade e a Infância, Luandino conversou, por e-mail, com o Estado. Como insere os contos de A Cidade e a Infância em sua obra? Já estava traçada ali sua intenção literária? Luandino Vieira: Como aquela pequena semente a partir da qual todo o trabalho literário se iria desenvolver. Os sítios, cenários, locais e as gentes que iriam povoar meu imaginário aí aparecem esboçados. Na verdade, sem grande justeza ou profundidade mas a escolha impôs-se-me: a cidade, a nossa terra de Luanda, sobretudo o espaço dos musseques e suas gentes. Também o que do fundo da infância e da adolescência sempre emergia e continua a emergir. É comum saber que para quase todas as pessoas, e quiçá mais para os que se fazem escritores, a infância é um manancial sem-fim e por toda a vida. Intenção literária não haveria muita. Ou era limitada a conformar minhas intenções de ser escritor como forma de participar no movimento cultural angolano que, naqueles idos de 1950, renascia com pujança político-cultural. E o que dizer do engajamento e a importância de sua linguagem literária? Luandino Vieira: Esse engajamento eu o tive como o modo de desnichar e propor a importância da linguagem popular dos musseques de Luanda para a construção de uma linguagem literária. Também como modo de afirmação da nossa diferença cultural, o que me dava legitimidade para exigir o reconhecimento da nossa especificidade cultural com vista à autonomia e autodeterminação políticas. Quanto à sua importância, não me cabe ser juiz dos meus atos e intenções. Penso que, sendo Angola nação relativamente jovem e Estado recente e sem tradição e prática de estudos literários, é cedo para avaliar. Sei, sim, que atuei de consciência e responsabilidade plenas nesse meu trabalho literário, e até como participação na luta por nossa emancipação política do Portugal colonial. Sua proposta seria apostar na transformação da realidade vivida pelas personagens a partir de sua conscientização e de sua atitude revolucionária? Luandino Vieira: Creio, ainda hoje, que sim. Procurei na realidade sociopolítica de então aqueles momentos e personagens que pudessem indiciar um grau, por mínimo que fosse, de atitude consciente no sentido da mudança; ou na luta pela mudança; ou nos comportamentos que, aparentemente inócuos, à vista desarmada, tinham já inscritos sinais da rebeldia, da revolta, ou da necessidade da revolução. Se isso serve para transformar a realidade... Ao tempo eu quase acreditava que sim. Minha “crença”, com a experiência, se atenuou. Mas continuo consciente, em última instância, do alto e insubstituível poder da palavra. Por vezes é a esse último grão de resistência que fica preso o destino do homem: o grito, articulação mínima da palavra. A idéia da tradição ainda é decisiva ou se busca fazer uma recriação contemporânea da tradição? Luandino Vieira: A idéia da tradição como elemento, suporte ou quadro de nossa identidade cultural coletiva e pessoal, é permanente. Mesmo que inconsciente. O que o escritor pode fazer - é impossível o regresso dos rios às nascentes, e, se regressam, é sob outra forma - é recriar a tradição em novas circunstâncias para novos desafios que, por sua dinâmica, uma cultura coloca cotidianamente. Sobretudo agora que começam a ser mais visíveis os desafios da desenfreada e comercializada globalização cultural... Qual sua expectativa em relação à vinda ao Brasil? Acompanha a atual literatura brasileira? Luandino Vieira: Minha expectativa é grande. Não visito o Brasil desde a década de 1980. Leio, ouço, tomo conhecimento das transformações ocorridas nos últimos anos. Quero ver com meus olhos esse país que sempre povoa o imaginário do angolanos em sua presente expressão. Porque, infelizmente, pouco ou nada acompanho da literatura que hoje se faz no Brasil. Mesmo os livros editados em Portugal não estão ao meu alcance. Mas isso é um dos traços comuns na situação do conhecimento e interconhecimento das literaturas em língua portuguesa. E não é da responsabilidade dos escritores. Os escritores escrevem"... LUANDINO VIEIRA: Pseudônimo de José Vieira Mateus da Graça, nasceu em 1935, em Portugal. Tornou-se cidadão angolano por combater ao lado do MPLA contra o domínio português e por ter contribuído para a criação da República Popular de Angola. Por conta disso, ficou preso entre 1961 e 1972. A reclusão, porém, foi inspiradora - em 1963, lançou o livro de contos Luuanda, narrativas que retratam a dura realidade dos bairros pobres de Luanda, editado no Brasil pela Companhia das Letras. Em 2006, recusou o Prêmio Camões por não se julgar um escritor em atividade. ONDJAKI: Pseudônimo de Ndalu de Almeida, nasceu em Luanda, em 1977, dois anos depois da independência de Angola. Palavra umbundu, Ondjaki significa “aquele que enfrenta desafios”. Poeta, contista e artista plástico, ele defende um maior contato entre as culturas de língua portuguesa. É autor, entre outras obras, de Bom Dia Camaradas, lançada no Brasil pela Agir, em que recria Luanda a partir de suas memórias afetivas. Dirigiu, ao lado de Kiluanje Liberdade, o filme Oxalá Cresçam Pitangas, dez formas diferentes de viver e interpretar a cidade de Luanda.

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