Papo sério sobre o 08 de março: "A saga feminista hoje"
Este artigo de Fátima Oliveira, publicado no sítio literário Lima Coelho - www.limacoelho.jor.br, me redime. Confesso-me muito constrangida quando um amigo ou parente do sexo oposto telefona para me parabenizar pelo "dia da mulher". Sei que há afeto sincero na felicitação, um jeito de valorizar o que faço na vida, as bandeiras que impunho, as causas que defendo, a minha maneira de abrir e consolidar caminhos. São formas de declarar admiração pela mulher que sou. Mas não dá pra fugir do fato de que esse desejo de felicidade (principalmente masculino) no tal "dia da mulher" é reflexo da "comercialização irreversível do Dia Internacional da Mulher", como vaticinou a querida mestra. Obrigada Fátima, e parabéns, pelo texto-nave-vida. Em tempo, parabéns também à Sobá Livraria & Café que, neste 08 de março, apaga a primeira velinha.
(por Fátima Oliveira)
"Diante da comercialização irreversível do Dia Internacional da Mulher, ouso reafirmar a radicalidade das idéias e da prática feministas, a quem devemos mudanças culturais expressivas na condição da mulher. Os padrões culturais indispensáveis à igualdade entre as pessoas são de alta complexidade e exigem tenacidade contra o sexismo, o racismo, a homofobia, a opressão de classe e o fundamentalismo religioso e suas novas formas de expressão, desde que decretaram a morte das ideologias, a maior mentira do presente século. Mas muita gente crê. E lutar contra crenças é inerentemente complicado.
Foi da consciência da milenar opressão de gênero, um fenômeno pancultural, e da compreensão que os governos nos devem muito que surgiu a idéia de um dia para denunciar a situação de segunda cidadania da mulher. A abolição de todas as formas de opressão está no horizonte, pois suas sementes já foram plantadas. A saga feminista hoje consiste em regá-las, pois nós, as feministas, somos jardineiras de um padrão cultural e ético não opressor. Só assim reverenciamos Clara Zetkin, líder socialista alemã, pelo seu gesto de propor na 2ª Conferência Internacional da Mulher Socialista, em Copenhague (1910), o Dia Internacional da Mulher Trabalhadora. Foi escolhido o 8 de março.
Há duas perguntas que me fazem muito. A primeira, o que uma mulher como eu ainda quero da vida? A segunda, por que o 8 de março é Dia Internacional da Mulher?
Pensando bem, e pensar é sempre perigoso, cada pessoa sabe de si. Digo-lhes: vivo prenhe do amanhã... Pensando mais, é inegável que tenho uma vida privada que de certo modo contém aparentes privilégios, considerando-se o contexto brasileiro - a Constituição mais avançada do mundo em relação aos direitos da mulher, que ainda não é a regra para todas; o fato inconteste de ser sobrevivente do tétano neonatal; e que "eu venho lá do sertão"...
Puxando pela memória... O Belém (dos Pretos), torrão ancestral materno (Colinas-MA), e Colinas, onde estudei, são doces recordações; Graça Aranha (MA), onde nasci, e seus caixões azuis de bebês, que ainda brotam como cogumelos, ainda dói, mas afaga meu peito; São Luís, com a poesia e sangue escravo que exalam dos sobrados de azulejos, sacadas e mirantes, foi o palco de minha vida de estudante, onde me fiz médica; Imperatriz (MA), que me acolheu em seu ventre laboral, criei raízes, enterrei lá meus mortos queridos, é minha casa, onde volto, sempre, levando flores, e reabasteço as energias. O resto é lucro, a envolver minha prole de cinco. Morar na linda Belo Horizonte, por exemplo.
Quantas pessoas podem contar uma história assim? Se são privilégios, eu os construí, com gana e garra. Como não honrar conquistas exuberantemente belas? Tenho a convicção que sou apenas usufrutuária do mundo. Assim sendo, tenho o dever moral de legá-lo bem melhor do que ele foi para mim às gerações futuras. Portanto, para mim, lutar é um dever moral. À segunda indagação, respondo recontando uma história prenhe de simbolismos. Foi em 8 de março de 1857 que 129 operárias de uma indústria têxtil de Nova York, a Fábrica Cotton, morreram queimadas. Em greve contra as péssimas condições de trabalho e exigindo melhores salários e redução da jornada de trabalho de 14 para dez horas, a resposta dos patrões foi fechar a fábrica e atear fogo no prédio ocupado.
Um dos meus ritos de passagem na travessia da vida foi a 3ª Conferência Mundial contra o Racismo (Durban, 2001). Poderia contar do que vi a partir de muitos lugares: de minha esquina de sertaneja negra; de minha esquina de anti-racista; de minha esquina de feminista; de minha esquina de comunista; e de minha esquina de médica, pois delas miro e vislumbro o pulso e o pulsar da vida: a cara oficial do mundo (os governos) é racista, machista e intolerante. E, por tabela, as sociedades são racistas, xenófobas, machistas ou intolerantes. Ou tudo isso junto. Como não lutar contra tantas mazelas?"
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