Domingas e a cunhada

Elas dormem juntas e isso é público, mas ai de quem as declarar amantes. A casa tem apenas um quarto, cuja porta sempre fica aberta e donde se vê uma cama de casal. Uma trabalha na feira. Vende abóbora, batata, milho. Tudo colhido de seu pequenino roçado. A outra cuida da casa e dela também, que fuma muito e tem uma tosse intermitente. O que se conhece da história das duas é que a primeira, Domingas, parou em Buritizeiro fugindo da seca. Saiu de Pernambuco em 1942, com dezesseis anos e seguiu o curso do São Francisco até chegar lá. A cunhada, que pouca gente sabe o nome, diz que saiu de Serra Talhada menos de um ano depois, atrás do marido que julgou estar com a cunhada, Domingas. Não encontrou o marido, mas achou Domingas e passaram a viver juntas. Quando Domingas a chama, geme alguma coisa como “Mindinha”, ou só “Inha”. E é assim que o povo a chama também, nas raras vezes que se dirige a ela. Tranqüila, calada, não é de conversação com a vizinhança. Quando mais nova falava-se muito da sua beleza. Pequena, rosto largo e vasta cabeleira preta. Uma bela índia. Domingas não era bonita, não. Nunca foi. Vida social as duas não tinham. Só a ex-freira holandesa visitava-as com freqüência. A freira morava com uma amiga e mudava de amiga de vez em quando. O povo maldava as amizades dela, mas, ao contrário de Domingas, ela não se importava. Era a única que sabia a história verdadeira e escreveu uma novela para participar de um concurso na Europa, depois da morte de Domingas e da autorização de Inha, que se descobriu chamar Arminda. Arminda, aos catorze anos e meio casara-se com Tonho, irmão mais velho de Domingas. Ele, desde criança, era encantado pelo Cangaço. Quando soube da morte de Lampião, resolveu ser cangaceiro para vingá-lo. Deixou o casamento recente e entrou para o bando de Corisco. Lá deixou de ser Tonho para se tornar Cabelinho de Fogo. Sempre fora desastrado e conseguiu dar um tiro na própria mão, o que lhe custou três dedos. Abandonou o grupo. Envergonhado, vagou pelos matos sozinho durante meses, antes de voltar para casa e comunicar à Arminda que se lançaria no mundo, mas sem ela. Tinha pouca condição para cuidar de si e nenhuma para cuidar dela. E foi embora. Domingas já havia partido e Arminda se perguntava por que não fora com ela, por que tivera medo de seguir a única pessoa que cuidara dela na vida. E como a vida de Arminda era esperar, esperava a carta prometida por Domingas. E a carta chegou. Foi baseada nela, no tesouro de Arminda, que a freira escreveu a novela. “Minha flor de mandacaru, depois de mês viajando, cheguei a uma terra onde tem água nos rio. Tem também uns bicho feio, de madeira, que eles chama de carranca e diz que espaventa espríto ruim dos barco. Minha estrela-guia foi a lembrança daquela noite de lua cheia que cê dormiu nos meus braço. Grudada. Um bumbo batendo dentro do seu peito e cê suaaava de medo. Foi o dia mais bunito da minha vida. Teve também as estrelinha miúda das outra noite que cê fazia que ia, mas saía correndo porque o medo tomava conta. E o Tonho nunca que voltava, nem deve de tê voltado. Cê num falava mais comigo e se eu ficasse mais um pouco sem aquela comida, cozinhava os miolo de sofrimento. Agora cê já sabe onde eu tô. Pega o barco e vem. Domingas.” E assim as duas meninas, uma de dezenove e a outra de dezesseis, se encontraram em Buritizeiro e viveram juntas por mais de cinqüenta anos, como irmã do marido fujão e cunhada. E ai de quem dissesse algo diferente. (Do livro Cada tridente em seu lugar. Arte: Iléa Ferraz).

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