"Lélia Gonzalez, uma amefricana" (1935-1994)

(Por: Elizabeth Viana, Mestre em História Comparada/UFRJ. Publicado no Irohin, N.17) "O período compreendido entre as décadas de 1960 e 1970 foi marco das lutas políticas de contestação no mundo ocidental, onde setores expressivos de varias sociedades ansiavam por mudança e transformação. É nesse cenário e seus desdobramentos que podemos inserir Lélia Gonzalez e seu pensamento (e sua trajetória de vida). Passados 12 anos (14 anos) de sua morte, ela permanece como referência. Mas quem foi essa mulher negra? Lélia de Almeida Gonzalez, penúltima décima sétima filha de Acácio Joaquim e Urcinda Seraphina de Almeida, nasceu em 1º de fevereiro de 1935, em Belo Horizonte/MG. Foi professora, tradutora, conferencista, consultora, assessora, conselheira, suplente de deputada e ativista. Estudou nas escolas Manoel Cícero, Rivadávia Correia e no Colégio Pedro II (1954), graduou-se em História e Geografia (1957/1958) e Filosofia (1961/1962) na Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da Universidade Estadual da Guanabara/UEG, atual UERJ. Nesse último curso, conhece e se casa com o seu colega de turma, Luiz Carlos Gonzalez. Com a morte do pai, seu irmão Jaime de Almeida, que jogava no Flamengo, transfere a família para o Rio, em 1942, época em que o clube conquista o seu primeiro campeonato e sucessivamente os de 1943 e 1944, tornando Jaime uma de suas lendas. Segundo o cronista Mario Filho, o clube ambicionava ser o “mais querido” do Brasil, apesar de ter sido uns dos fundadores da Associação Metropolitana de Esportes Atléticos, AMEA, (1924), para barrar a ascensão do Vasco –que incluía negros e mulatos - e manter ariano, como destaca Edson Carneiro, o futebol brasileiro. Foi uma provação para negros como Jaime. O contexto era o da Segunda Guerra Mundial e do Estado Novo. O cronista o descreve como um negro bonito, saudável, digno e de boa alma, que em tudo “recendia a limpeza, a bondade, a lealdade”, somente comparável a “um mordomo do velho Sul dos Estados Unidos”, enfim, para ele, um verdadeiro “Gandhi”. Jaime foi para Lélia seu pai simbólico e modelo. Lélia foi a única a ultrapassar o ensino primário e, essa conquista, como fazia questão de destacar, ela alcançou graças aos seus irmãos que aceitaram sua reação contrária em ser babá de “filhinho de madame”. Estudou numa escola de excelência, mas, segundo ela, foi onde efetivamente começou a incorporar a “ideologia do branqueamento”, que a tornou uma pessoa insegura, tímida e reprimida, porque “apreende aquelas baboseiras sobre os índios e os negros” até a universidade e esta última não trata nos “devidos termos” essa questão. Assim, Lélia adquiriu “gostos refinados” para a “música clássica dos europeus”, rejeitava música popular e o samba. Considerava as religiões de matrizes africanas “primitivas” e ostentava o símbolo do branqueamento: uma peruca. Ela, olhando o passado com os olhos do presente, compreende que queria ser uma “lady”. Enquadrada “perfeitamente” dentro do sistema universalista sua ascensão foi fulgurante. Entre 1962 e 1968 lecionou em colégios públicos e particulares: Colégio Piedade, Colégios Andrews, Colégio Santo Inácio, Colégio de Aplicação da UEG, Instituto de Educação e C.E.P (Centro de Estudo de Pessoal) do Exército Brasileiro. No ensino superior, em 1963, nas Faculdades de Filosofia de Campo Grande (FEUC) e Filosofia, Ciências e Letras (UEG), Faculdades Integradas Estácio de Sá, na qual exerceu as funções de Coordenadora do Departamento de Estudos e Pesquisas do Centro Cultural, (1973-1974), Vice-Diretora da Faculdade de Comunicação (1973-1974), e Diretora de Departamento de Comunicação (1974 – 1975) na Universidade Gama Filho/UGF e na Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. Com a radicalização do quadro político foi demitida, juntamente com uma parte dos professores, das universidades Estácio de Sá e Gama Filho, onde era efetiva. É convidada para lecionar na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). Nos meios universitários, com pouco mais de 30 anos, já tinha uma certa expressão e era uma exceção: negra, jovem, no meio de medalhões e “brilhava” . Sua casa era ponto de encontro de estudantes, professores, artistas e amigos. Mas, em sua vida particular, sofrera perdas e experiências traumáticas: a morte da mãe, a rejeição da família espanhola do marido, o suicídio do marido e a prisão de uma de suas irmãs. Passou, em 1972, a ser alvo da vigilância do DOPS, pois estaria, a partir da UGF, recrutando adeptos “para a doutrina marxista”. As perdas foram amenizadas pela criação de seu sobrinho, Rubens Rufino, como filho, o apoio da família e a solidariedade dada em vida pelo marido que, a despeito de sua fragilidade emocional, a estimulou romper com a “lavagem cerebral” que sofrera com a ascensão social. Gonzalez é sua homenagem ao marido. Outro ponto de apoio foi a psicanálise lacaniana e o candomblé. Dessa forma se reencontra com a comunidade negra da qual se distanciara, ou seja, como afirma, Célia Tomé, fez “as pazes com seus ancestrais”, no caso de Lélia, negros e indígenas. Daí em diante, Lélia investe seus estudos e suas energias no combate ao racismo (e ao sexismo) e credita a essa militância seu amadurecimento intelectual e político. Uma neguinha atrevida. O ano de 1976 foi o divisor de águas na vida de Lélia. Por sua iniciativa é realizada uma serie de cursos e atividades na Escola de Artes Visuais, no Parque Lage, sobre Cultura Negra. “Coincidentemente” ou por “opção” levará mais de uma dezena de anos a exercer algum cargo nas estruturas universitárias. O cenário: ditadura militar, as lutas de libertação africana e retomada do Movimento Negro. Desse último se aproxima “devagarzinho”, participando das atividades do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras/IPCN (1976) e do Grêmio Recreativo de Arte e Escola de Samba Quilombo (1975). Em 1977, integra a equipe de entrevistadores do Programa 1977 da TV Educativa. Em 1978, é uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado, MNU, integrando sua primeira Comissão Executiva Nacional (1978–1982), o que lhe permite atuar nacional e internacionalmente, denunciando o mito da democracia racial brasileira quer seja nos meios acadêmicos, quer seja em pequenas reuniões. É o ano também em que o DOPS passa sistematicamente a acompanhar suas atividades (e do MNU e do MN), registrando sua movimentação: palestras, congressos, encontros etc., inclusive aqueles realizados em sua casa até a candidatura a deputada federal pelo PT (ficou como primeira suplente , em 1982), de que foi membro do Diretório Nacional (1981-1984). Em 1983, devido a essa candidatura, desliga-se do MNU. Para Lélia, foi o período em que o MN alcançou as comunidades negras com as dobradinhas que fez com Benedita da Silva e Jurema Batista, então lideres das favelas cariocas. Em 1983 é também fundado o Nzinga- Coletivo de Mulheres Negras (RJ), e Lélia foi sua primeira coordenadora. Em 1985, desfilia-se do PT por divergências com o PT/RJ, pela omissão do partido com a questão racial. Filia-se ao PDT por achar que esse respondia com mais conseqüência às demandas do MN. Mas era época da Nova República (1985) que, para alguns, seria a possibilidade de uma “nova” conjuntura democrática. Além de apoiá-la, o PDT tinha como ponto programático a questão racial e um dos seus lideres era Abdias do Nascimento, referência histórica no combate ao racismo, por cuja interseção Lélia conheceu a África (1979), através do Prof. Carlos Moore. Apesar de Lélia ter sido suplente de deputada estadual pelo PDT (1986) e diretora do Planetário da Gávea (1987 – 1989), também por divergências políticas afasta-se da agremiação. Ao mesmo tempo, Lélia refletia sobre raça, gênero e história. Citamos por exemplo: Lugar de Negro (1982), em parceria com Carlos Hasenbalg, A mulher Negra na Sociedade Brasileira (1982) e Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira (1983), A Categoria Político-Cultual da Amefricanidade (1988). Na condição de intelectual, Lélia expôs-se e expôs seus questionamentos contra os saberes constituídos (acadêmicos e políticos) tanto com as suas formas tradicionais de pensar e quanto de fazer política. É como uma mulher negra que (re)toma a palavra (em nosso país é o outro que fala por nós) para realizar uma crítica à historia oficial, destacando “novos” personagens: o “povo brasileiro” e o “povo negro”, esse último protagonista de suas reflexões. Nessa sociedade hierarquizada (por classe, por raça e por sexo) os lugares dos sujeitos são determinados a partir de sua filiação racial. Uma realidade que a “boçalidade europeizante” tenta calar inutilmente. E mais, comparando as sociedades em que as culturas africanas (intensas e dinâmicas) se fazem presentes, Lélia argumenta que devemos levar em consideração as experiências histórias de cada povo, assim, ela, pioneiramente, como ressaltou Raquel Barreto, pensando diasporicamente, nos chama atenção que não somos afro qualquer coisa e sim amefricanos (de Cuba, do Haiti, do Brasil, da República Dominicana, dos Estados Unidos, ...). Amefricanidade é uma categoria analítica que ela elaborou para dar conta das experiências históricas dos povos negros que têm como referência modelos culturalmente africanos. Na compreensão de Luiza Bairros, o seu valor teórico metodológico está no fato de resgatar, historicamente, uma unidade especifica, forjada fora da África. Essa reflexão surge de um lado para que possamos abandonar as reproduções de um imperialismo que nos massacra e de outro reafirmamos as nossas particularidades da experiência na América, porém, sem perder a consciência da dívida e dos profundos laços que nos unem a África. Coerentemente, Lélia reconhece, (e dela fez parte e bebeu na fonte) a contribuição dos intelectuais e militantes pan-africanistas que postulam que uma ideologia libertadora só pode derivar de nossa própria experiência e não de algo imposto e externo. No movimento social, Lélia também tinha uma visão singular. Critica os movimentos feminista e negro: o primeiro por não reconhecer a opressão racial e o segundo, a opressão sexual. Apesar de considerar as mulheres negras determinantes no processo histórico (valentes e guerreiras ontem e hoje), divergiu do movimento por considerar que só podemos assumir nossa mulheridade a partir de uma relação de gênero em busca de um equilíbrio e não numa relação de competição, pois essa nada mais seria do que uma reprodução de certas práticas do feminismo. Na sua reflexão, a sexualidade não estaria tão somente no nível do orgasmo “pura e simplesmente” e não existiria somente numa relação homem/mulher. Ressaltamos que Lélia era feminista assumida e reconhecida, tanto política como intelectualmente, mas do seu ponto de vista as respostas encontradas pelos movimentos negro e de mulheres negras não seriam satisfatórias. Para superar as divergências e a falta de diálogo - essa última determinada historicamente - deveríamos aprender com os antigos especialmente com as lutas quilombolas (e outras formas organizativas), das mulheres africanas e amefricana. Em conseqüência de sua doença (diabetes mellitus), em 1991, Lélia afastou-se da militância, mas continuava dialogando e antenada com os acontecimentos políticos. Aparentemente recuperada, propõe-se a retornar a plenitude de suas atividades. Assim, foi eleita chefe de Departamento de Sociologia da PUC, em maio de 1994. Mas o coração não resiste. Em 11 de julho 1994 ,em pleno sono, faz a passagem do Yaê para o Orum". (Foto: Januário Garcia) Para saber mais: BAIRROS, Luíza. Lembrando Lélia Gonzalez. Salvador/BA, Afro-Ásia nº 23. Centro de Estudos Afro-Orientais, 2000. BARRETO, Raquel Andrade. Enegrecendo o Feminismo ou Feminizando a Raça: Narrativas de Libertação em Ângela Davis e Lélia Gonzalez. Orientador: Marco Antonio Villela Pamplona, Dissertação de Mestrado (História Social da Cultura), Departamento de História da PUC - Rio, Rio de Janeiro: 2005. COSTA, Teresa Cristina N. Araújo. Caminhando contra o vento – notas sobre a candidatura de Lélia Gonzalez, Ano 1, nº 3, Rio de Janeiro: Comunicações ISER, 1982. VIANA, Elizabeth do Espírito Santo. Relações raciais, gênero e movimentos sociais: o pensamento de Lélia Gonzalez 1970 – 1990. Orientador: Flávio dos Santos Gomes, Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História Comparada), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

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