O poder humanizador da poesia
Vem sendo veiculado pela TV Senado, programa literário de entrevista com a escritora Adélia Prado, gravado em São Paulo, dia 06 de agosto passado. Estive lá e não consegui entrar, sala pequena e gente demais pleiteando um lugar. Assisti pelo telão e socializo agora minhas anotações. Antes, contudo, confidencio-lhes que conheci Adélia quando tinha uns 18 anos. Cheguei em casa num domingo à noite, liguei a TV e lá estava ela, a entrevistada de um programa da extinta Rede Manchete, chamado Persona. Roberto D’Ávila o apresentava naquele formato de sempre, que só muda de nome e de canal televisivo. Não é uma crítica, só um comentário, afinal, o entrevistador é ótimo e a fórmula se mantém porque é boa. Bem, aquele belo rosto redondo tomava conta da tela e a boca dizia um poema que me marcou para a eternidade: “quando nasci/um anjo anunciou/vai carregar bandeira/fardo pesado pra mulher (...) vai se coxo na vida/é maldição pra homem/ mulher é desdobrável/ eu sou.” Eu que não consigo decorar nada, nem o que escrevo, guardei aqueles versos como prece. Nunca mais fui a mesma. Durante a semana seguinte toca a procurar o livro da Adélia nos sebos, Bagagem. Encontrei, comprei e li, reli, li, reli e quedei-me irremediavelmente apaixonada por ela. E decorei trechos de outros poemas, disponíveis em meus arquivos mentais até hoje. Assisti palestras, conferências, “Dona Doida”, encenada pela Fernanda Montenegro, mas só vi Adélia de pertinho, muitos anos depois. Foi no ano passado, durante a apresentação de uma peça sobre obra do Mia Couto, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Acompanhei o Pablo e a Mazza, da Mazza Edições. O coitado do Pablo deve ter ficado com o braço roxo, tal a força com que o cutuquei para, muda, apontar Adélia Prado que passava. Superada a dúvida dilacerante – ir ou não ir, incomodar ou não um ídolo num momento de gente comum – assumi meu papel de fã e fui até lá entregar a ela um exemplar do Tridente, antes do programa da noite começar, logicamente. É dispensável contar minha falta de jeito para abordá-la, coisa de fã idiota. Por fim, deixei o livro e voltei ao meu posto trupicando nas pessoas que lotavam a sala e de lá fiquei olhando Adélia a folheá-lo. Mas, descontado meu nervosismo, a culpa dos tropeços não foi minha, a sala era horrivelmente desconfortável. O Mia Couto que também estava lá, quando deu umas palavrinhas de saudação à platéia e louvor ao grupo de teatro, apresentou Adélia, agradeceu presença tão distinta, falou do quanto gosta da literatura Adeliana e só aí, um monte de gente desavisada se deu conta de que aquela respeitável senhora era Adélia Prado. O panfleto de divulgação da entrevista que assisti há algumas semanas dizia: “Ler Adélia Prado é um presente. Ouvir Adélia Prado falando sobre 'o poder humanizador da poesia' é uma oportunidade rara.” Assino em baixo. Quem tiver a chance de assistir o programa pela TV Senado, faça-o, vale a pena. (Trechos da entrevista): “A arte se justifica pela poesia que contém (...); Quando em arte se fala de beleza, fala-se da forma, não da boniteza. Arte é para a inteligência do coração, não para a nossa inteligência lógica (...); A forma não é o que está se mostrando, mas o como se mostra (...); Qualquer coisa é a casa da poesia, ela pousa onde lhe apraz (...) Toda obra me oferece um espelho, faz com que eu me reconheça nela. A obra de arte dá significação e sentido à minha vida. Nós somos finitos, a obra de arte, não; ela não passa. A obra de arte segura o tempo para nós. Somos fragmentários, o que mais nos aproxima do todo, da unicidade, enquanto estamos vivos é a obra de arte. A arte procura a beleza que se revela. Há pessoas que vão olhar as flores e o céu estrelado depois de tê-los visto no poema (...); Nada mais comum em nós do que nossos afetos (...); A retórica é quando a expressão do sentimento é maior do que ele. Você diz tanto que ama que a pessoa desconfia (...); Quem tem a cabeça nas nuvens é caso de psicologia e não de poesia – a arte não aliena ninguém, ela traz para a realidade (...); A poesia, não sendo lógica, me dá o peixe sem ter que entender o anzol. A arte para dar não é econômica, é generosa. Só é econômica na hora de fazer, não cabem enfeites (...); Ninguém descreve o ato criador (...); Quando você escreve algo que está pedindo pra ser escrito, é mais fácil, depois é só cortar (...); A insistência no cotidiano é porque a gente só tem ele – a cada um de nós cabe a vida comum (...); Nada mais comum em nós do que os nossos afetos. Toda felicidade ou infelicidade humana tem a ver com os afetos (...); A educação pela arte é amorosa”. Um diretor de teatro fez lá uma pergunta sobre a transcendência da criação e coisa e tal. Alardeou o espetáculo que ora dirige, baseado em poemas da Adélia. Ela o olhou surpresa (minha interpretação do olhar dela) e eu pensei: “o gaiato vem usar a presença da escritora pra fazer propaganda da peça e direitos autorais, necas”. Lembrei-me de Ângela Davis, na São Luís do Maranhão de 1997, quando a vi receber um livro de sua lavra para autógrafo. Era publicação desconhecida para ela. A Pantera Negra pensou bastante antes de autografá-lo e chegou a discutir com a dona do livro se o faria ou não. O caso é que a moça era comunista e a convenceu de que o grupo editor da obra, também comunista, o fez na década de 1970, no Uruguai, se não me trai a lembrança, de maneira clandestina, correndo riscos, porque era estratégico dar circulação àquele pensamento revolucionário, em espanhol. Então, Ângela Davis, convencida da nobreza de propósitos da publicação, autografou. Na verdade foi uma lembrança torta, porque na atitude do diretor parece ter havido apenas esperteza, e, mais uma vez, a autora é quem menos lucra na cadeia produtiva de uma obra bem sucedida. E segue o rio, a poesia continua humanizando a vida de quem se permite senti-la.
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