A Copa de Nações Africanas e a crônica esportiva tupiniquim





por Cidinha da Silva*

Começa o jogo e recomeçam os comentários batidos sobre a força e os músculos proeminentes dos jogadores africanos. Se o narrador acrescentasse o fato de que a maioria deles jogou futebol amador por tempo considerável, que compatibilizou trabalho braçal, em muitos casos desde a infância, com o sonho de serem astros do futebol, talvez o telespectador pudesse contextualizar tanta explosão muscular e baixo percentual de comida, ops, de gordura.

O narrador da final inédita entre Nigéria e Burkina Faso é negro. É provável que sua escalação tenha sido um espasmo politicamente correto da emissora, assim como fazem na cobertura estatal do carnaval baiano, ao desenterrar jornalistas negros ou mais melanizados de todos os lugares possíveis, para dar a impressão de que foram visíveis desde sempre. É um profissional negro, daqueles negros que inoculam diariamente a diluição da negrura na própria corrente sanguínea, na aflição de serem engolidos pelo racismo cordial. Ficam tão viciados na poção mágica que, entorpecidos frente ao poder de comunicação direta com a massa, querem passar como brancos. Brancos não são, mas é como se negros não fossem.

Podia ter caprichado na pesquisa irmão, como vocês fazem quando se trata de um país desconhecido do Leste europeu. É tanta informação que depois da transmissão esportiva a gente sai expert em História, geopolítica, economia e cultura do país focalizado. É justo, muito justo, é justíssimo! Mas os países africanos também merecem carinho.  Ah, mas quem faz a pesquisa é a produção... Em que pese o microfone estar em sua mão, não é mano?

Seria de bom alvitre que os telespectadores tivessem elementos para compreender porque os africanos são tão coloridos, como vocês gostam de dizer. O amarelo, o verde, o preto e o vermelho, presentes em várias bandeiras de países africanos (e nas roupas da torcida) são as cores do pan-africanismo, da crença na unidade política de África frente ao colonizador branco-europeu. Ideário de luta de Du Bois, Marcus Garvey, Abdias Nascimento e Bob Marley na Diáspora Africana, Kwame Nkrumah, em África. One people! One Love! Broda!

O cinema, sim, o cinema tem grande importância cultural e econômica na vida de Nigéria e Burkina Faso, países da África do Oeste, finalistas da Copa de Nações Africanas. Ouagadougou, capital de Burkina, abriga um importante festival de cinema, o FESPACO, no qual cresce a participação de cineastas afro-brasileiros a cada edição. Na Nigéria, a produção cinematográfica anual supera a de Hollywood, cujo nome serviu de inspiração para o pólo africano (Nollywood), a exemplo do Bollywood indiano. A ordem mundial de produtores de cinema é a seguinte, só para firmar: Índia em primeiro (Bollywood), EUA em segundo (Hollywood) e Nigéria em terceiro (Nollywood).

Simples, não, produção? Vocês poderiam ainda esmiuçar o tema e mostrar que a indústria cinematográfica da Nigéria desenvolveu-se como alternativa à falta de salas de cinema. É um mercado predominante de vídeos para serem assistidos em casa, passíveis de aquisição nos mais diversos pontos comerciais das cidades e lugarejos. Pode ser também que isso esteja em alguma medida relacionado com o resultado das guerras que tanto destaque merecem nas transmissões de vocês, cabe a pesquisa.
Participantes do III Encontro de Cineastas da África
e da Diáspora.
 Burkina Faso (Foto: Joel Zito Araújo)

Ah... ainda sobre a Nigéria, é de lá que vem uma cultura enraizada no Brasil chamada I-o-ru-bá? Já ouviram falar, não é? Aquela tradição presente nos rituais de candomblé ridicularizados pela mídia em geral, pelos programas humorísticos etc. Da Nigéria foram retirados milhares de pessoas, escravizadas no Brasil e aqui reinventaram a cultura iorubana possível.

Quando se trata de Portugal e Brasil em competições esportivas, vocês gostam de chamá-los de países co-irmãos. Nos casos de Nigéria, Angola, Moçambique, Benin, podem chamar de mãe e filho que não será exagero. Captou produção?

Produção, agora, uma curiosidade sobre o camelo, animal muito utilizado no transporte de pessoas e coisas, ainda hoje, em Burkina. Embora já existisse no Egito antigo, o camelo passou a ser usado para a circulação de pessoas e mercadorias no deserto, a partir do século IV da nossa era, dinamizando a economia. Este simpático animal, que dizem se alimentar até de pedras, dada sua resistência, foi grande impulsor da vitalidade do comércio de curta, média e longa distância dentro do continente africano. Esse comércio permitia que os grupos humanos tivessem acesso a coisas que não produziam diretamente, bem como a novas idéias e comportamentos.

Existem outros animais em África além das zebras, girafas, crocodilos e hipopótamos fetichizados por vocês. Existe, por exemplo, o utilíssimo camelo, grande protagonista na comunicação entre a floresta e o deserto, as populações costeiras e ribeirinhas e as savanas. Sacou produção?


escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna quinzenal Dublê de Ogum. Imagem: dancarinos se apresentam durante a cerimonia realizada antes da final da Copa das Nações.

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