Cidinha da Silva participa de matéria da Fórum sobre arte na periferia
Arte da periferia: entre o assédio do mercado e a resistência
Estimulada por políticas públicas e pela internet, a cultura periférica se expande e resiste aos avanços da indústria cultural. Na disputa por visibilidade, artistas começam a questionar se a associação com grandes companhias é o melhor caminho
Por Anna Beatriz Anjos, Igor Carvalho e Ivan Longo
A tentativa da indústria cultural de cooptar expressões artísticas da periferia não é uma novidade. Samba, tecnobrega, funk, hip hop, entre outros movimentos têm em comum o fato de serem oriundos dos guetos brasileiros tendo sido, exaustivamente, explorados pelo mercado. Nas novelas, filmes, séries, programas de TV e rádio e até nas páginas dos jornais, quase tudo se copiou desses gêneros: roupas, expressões, comportamento, tudo se tornou produto na prateleira do mercado.
No entanto, a ideia de que esses movimentos culturais podem ser resistentes aos avanços da ideologia do consumo está implícita até mesmo na adoção do termo “periferia”, que foi politizado e utilizado como ferramenta de articulação social contra o discurso de opressão às classes populares, como explica o sociólogo e músico Tirajú Pablo D’Andrea.
“A palavra ‘periferia’ era um termo mais utilizado pela academia, tentando definir uma situação sociológica e geográfica. O termo ‘periferia’ vira uma arma política e uma forma de organização na década de 1990, principalmente por força do movimento hip hop”, explica D’Andrea, que se refere aos dias atuais para elucidar as consequências da utilização do termo. “Hoje, a gente vai para as manifestações do MTST [Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto], a turma está gritando: ‘a periferia chegou’. Tem um movimento que percorre vários outros movimentos sociais, que é o ‘Genocídio contra a população negra e pobre da periferia’. O que quero dizer é que, trinta anos atrás, a palavra ‘periferia’ não era usada dessa maneira, como arma política, e hoje ela é. Quem fez essa passagem, de termo da sociologia urbana para enfrentamento político, foram principalmente as expressões artísticas dessa periferia”, completa.
E essa periferia, hoje, anos depois da brutal e fundamental influência do hip hop, no final da década de 1980 e começo dos anos 1990, se distancia da influência e dependência das elites, explica a secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura, Ivana Bentes.
“O termo ‘periferia’ se opõe classicamente à ideia de centro: centros geográficos, econômicos, centros culturais, centros de poder, mas ganha hoje um significado simbólico e político ainda mais radical, pois uma periferia pode ser um ‘nó’ de um novo arranjo numa cultura de redes”, afirma a pesquisadora, também professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para quem “as redes de periferias, as bordas, articuladas, não precisam de centro”. “Essa é a novidade da cultura de redes. Hoje, podemos falar de uma periferia global, que se articula por fora e por dentro, atravessa os centros. O hip hop, por exemplo, é uma cultura periférica global”, explica.
Foto: Riotur
Quem é o dono da bola?
O sociólogo Rogério Silva, autor da tese de doutorado “A periferia pede passagem: trajetória social e intelectual de Mano Brown”, cita o apresentador da TV Globo, Luciano Huck, como exemplo de tentativa, dentro da grande mídia, de cooptação de um movimento periférico.
“Há um bom tempo ele tenta se transformar no líder do hip hop no Brasil. Tentou fazer um show no sul do país, e há os festivais que tenta realizar aqui em São Paulo. Em 2007, por exemplo, apresentou um festival com o Ice Blue [do Racionais MC's]; em 2008, lançou um CD de rap. Mais recentemente, convidou o Edi Rock [também do Racionais MC's] para fazer uma apresentação em seu programa e deixou lá de forma clara que o palco dele estava aberto para os rappers”, explana Silva, que cita Gabriel, o Pensador como exemplo de rapper “palatável” à grande mídia. “Pra você ser do rap, e isso é uma característica do rap de forma geral, tem que pertencer àquele grupo, fazer parte daquilo ali. Você relata o que viveu. Gabriel, o Pensador é um rapaz de classe média”, defende.
É possível romper com a politização do termo “periferia” ou tentar modificar o sistema por dentro da sua ordem? A escritora Cidinha da Silva acredita que é “preciso parar com essa coisa autoritária de definir o que a arte do outro deve ser e onde deve estar”, mas reconhece: “Sempre que você dialoga com o poder estabelecido está forçando a porta para entrar em lugares que não te querem, que não foram pensados para você e que aceitam te incluir de maneira subordinada. Se você topa jogar o jogo, na arena deles, precisa estar preparado porque a briga é de cachorro grande e nem sempre será leal”, coloca.
O rapper Crônica Mendes é cético em relação a uma possível associação da cultura periférica com o mercado fonográfico. “Para entrar, você já perde valores, os papéis são invertidos. Temos vários artistas do rap nacional que entraram de cabeça na indústria e foram para a geladeira. Fizeram um hit para uma gravadora e sumiram, desagradando o público do rap, mas agradando um outro público. Mas aí ele não consegue emplacar outro hit e se queima dos dois lados”, considera.
Crônica cita o rock nacional como exemplo. “Se vendeu a tal ponto que acabou, está acabado”, assinala. Cidinha da Silva relembra o maior grupo do rap nacional para ponderar e pedir mais tolerância. “Um aspecto fundamental é saber lidar com o tempo, não fossilizar, não estigmatizar, reconhecer que a história muda e as personagens crescem, amadurecem, se transformam. Na década de 1990, o Racionais MC’s não dava entrevistas para a imprensa hegemônica. No ano passado, o grupo foi capa da Rolling Stones”, destaca a escritora. "E o discurso dos caras continua afiadíssimo, completa".
A mudança de discurso do artista que surge na periferia e é catapultado para o sucesso pelas plataformas tradicionais é a maior preocupação dos movimentos culturais. Thelles Henrique, produtor cultural e integrante da Liga do Funk, confirma a alternância comportamental provocada por exigência dos empresários. “Acho triste alguns artistas de funk que, após entrarem no mercado, acabaram se anunciando como do segmento pop, renegando as próprias raízes. Isso é influência do mercado fonográfico. Acho isso horrível, deprimente e lamentável”, destaca.
O cantor Latino é lembrado por Thelles como um exemplo de artista que se adequou ao comportamento pedido pelo mercado fonográfico e que segue negando sua origem. “Ele foi forjado no funk – a “Me Leva” é uma composição do DJ Malboro, por exemplo – e não carregou essa bandeira. Poderia ter contribuído para amenizar esse preconceito [de que o ritmo é alvo], mas as pessoas se acovardam. Assim, acaba se perdendo a flâmula do funk, o cara se afasta daquele estilo que vai lhe gerar preconceito”, ressalta.
Rogério Silva explica que a decisão de aderir ao mercado pode ter consequências até mesmo no berço do artista. “Não sei se, com a aproximação com a grande mídia e a indústria cultural, o artista vai perder sua dose de questionamento e denúncia. No Brasil, o que a gente tem é o seguinte: os artistas que se aproximaram demais da indústria cultural deixaram de ter legitimidade dentro do próprio movimento, praticamente desapareceram. É o caso do Xis, e, mais recentemente, da Negra Li”, exemplifica.
Ainda no exemplo do rapper Xis, o sociólogo lembra que o também rapper Thaide, no começo dos anos 2000, defendia que o rap deveria ir para a grande mídia. “O Xis, que era do DMM, estava fazendo muito sucesso em 1999 com a música ‘Os Manos e As Minas’. Logo depois, o Xis vai fazer um programa de TV, o ‘Casa dos Artistas’, e recebe muitas críticas por isso. Depois, sai e vai fazer shows sem ter uma relevância muito grande. Hoje, praticamente não canta, ele é produtor musical”, lembra Silva. Thaíde, que conseguiu entrar para a chamada mídia tradicional, é apresentador do programa A Liga, na Rede Bandeirantes.
Geandson Rios, da banda de tecnobrega Djavú, explica que a banda resiste às investidas do mercado quando essas são acompanhadas de propostas que vão alterar o conceito do grupo. “O artista quer sempre estar no meio popular e a gravadora às vezes quer mudar alguma coisa, pra tocar na Globo, ou na MTV, isso prejudica o artista por que ele sai do popular para ir para outro mercado e deixa aquele público popular lá, tudo aquilo que começou. Por isso que muitos artistas desaparecem do mercado”, opina.
Foto: Divulgação
Internet e novas possibilidades
Nas barganhas culturais entre a periferia e a elite, a última fica em débito histórico. Do samba, nascido da correspondência sentimental de descendentes africanos, até o hip hop, o propulsor da produção artística da periferia nos últimos 20 anos, inúmeros artistas tiveram que se render à indústria do entretenimento.
A novidade, nos últimos dez anos, de aceleramento da produção cultural nas periferias, é a possibilidade de êxito profissional sem a dependência atroz da indústria cultural. Isso, graças à internet. “Hoje, produzimos mais porque houve uma ascensão social, graças ao governo Lula. A periferia consome muito mais sua própria cultura, quem é daqui, quer consumir, por identificação, o que se faz aqui. Nós, artistas de periferia, estamos escrevendo a história do nosso povo, que não está nos livros das escolas”, afirma o rapper Crônica Mendes.
Ivana Bentes vê o surgimento de uma “ciberperiferia”, que é capaz de se apropriar das tecnologias e processos mais sofisticados. “Vimos isso com a explosão dos grupos, coletivos e redes culturais que surgem nas cidades, na forma como as redes estão sendo usadas como lugar de produção de discurso contra o racismo, o assassinato dos jovens nas favelas, como ferramenta de organização dos movimentos culturais e sociais”, defende.
Para Rogério Silva, um exemplo do uso da internet como forma de se tornar independente da indústria fonográfica, alargando as possibilidades de sustento da própria arte, é o rapper Emicida. “Ele, num primeiro momento, vendia seus CDs artesanais no centro de São Paulo, mas rapidamente conseguiu transformar aquilo que chama de ‘laboratório fantasma’ num grande meio, um site onde você encontra toda a sua produção, inclusive camisetas, bonés, enfim, tudo que eles fazem”, conta.
Fruto da revolução cultural provocada pela internet é a ascensão do funk. Independente de qualquer intermediação, o ritmo é responsável por milhões de visualizações no Youtube e seguidores nas redes sociais.“Hoje em dia, você é analisado pelo mercado com a possibilidade de venda e isso é medido nas redes sociais e no seu canal no Youtube”, aponta Thelles, da Liga do Funk, que cita a MC Ludmilla, Anitta e Naldo como exemplos de funkeiros saídos da internet direto para a grande mídia.
Geandson Rios, da banda Djavú, credita à rede e às novas mídias e plataformas a ascensão do grupo de tecnobrega. “No celular você baixa tudo, tem acesso a várias bandas, escuta dezenas de ritmos diferentes. A gente divulga tudo na internet, nós nos tornamos um fenômeno da internet quando começamos. Isso tudo de forma independente, sem gravadora. É possível quebrar o mercado através da internet”, relata.
Foto: Flickr/Henrik Moltke
Preconceito e elitismo
Ídolos do movimento conhecido como “sertanejo universitário”, a dupla Munhoz e Mariano se vangloria por seu Camaro amarelo na música que carrega o nome do carro. A obra em nenhum momento é criticada por sua “ostentação”. Na contramão, ao funk são endereçadas as mais duras críticas pela sua exaltação ao consumo.
“A nossa potência na sociedade capitalista se expressa pela capacidade de consumo. Claro que a elite se incomoda de ver os pobres expressando potência, aí a crítica da elite ao funk ostentação é a mesma crítica ao nordestino que anda de avião e à doméstica que cobra direito trabalhista”, explica Tiarajú D’Andrea.
O sociólogo defende que a tolerância com o discurso dos neo-sertanejos é classista. “O sertanejo universitário é o desdobramento do agronegócio. A força econômica do agronegócio, que há anos detona o solo brasileiro, produziu uma expressão cultural e a sua principal manifestação é o sertanejo universitário, isso pertence à burguesia rural e não será criticado”, afirma.
Quem também viveu o preconceito durante sua trajetória artística foi Geandson Rios. “Antigamente, o ‘brega’ era uma coisa nordestina e ficava muito restrito lá, aí tinha o preconceito. Durante todo esse tempo ele se manteve vivo graças à periferia, que gosta de música brega. O preconceito diminuiu muito por que a mídia viu que dava dinheiro e se apropriou”, explica o integrante da banda Djavú, lembrando que o sertanejo universitário é um movimento que conta com muitos nordestinos de periferia, “mas isso pouca gente sabe.”
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