Quando a rede social gera a ilusão de que sozinha resolverá questões improváveis
Por Cidinha da Silva
O caso da prisão arbitrária de Mirian
França, farmacêutica e doutoranda em Bioquímica, negra, sem antecedentes
criminais, por longos 16 dias sob acusação de ter assassinado Gaia Molinari,
turista branca italiana, na praia de Jericoacoara, em Fortaleza, baixou o tom
de gravidade diante da reação pública contrária à prisão, externada nas redes
sociais. A ação destas denunciou o racismo motivador da acusação e o discurso
foi alterado para possível participação no assassinato, não mais ato exclusivo.
Conseguida a liberação do cárcere,
Mirian França continuou constrangida a permanecer os 30 dias seguintes em
Fortaleza, ou seja, não pôde voltar para casa no Rio de Janeiro e retomar a
vida sequestrada pela prisão. Este foi o recurso encontrado pela Defensora
Pública que cuidou do caso para, de alguma forma, contentar a delegada que impunha
a Mirian a prisão injustificável baseada em contradições bizarras nos
depoimentos, como exemplo, o número de cafezinhos que Gaia teria tomado
enquanto passara algum tempo com Mirian.
Estivemos diante daquilo que Milton
Santos caracterizou como a brutalidade com que a informação inventa mitos.
Dizia o geógrafo em entrevista a Gilberto Gil em 1996: “Acho que vai haver uma
grande mudança política, mas nós não temos noção dessa possibilidade, dessa
enorme mudança, por causa da violência da informação que é um traço
característico do nosso tempo. A brutalidade com a informação inventa mitos,
impõe mitos e suprime o que a gente chamava antigamente de verdade, essa
violência da informação e das finanças, criou uma certa ideia tão forte do
mundo atual que a gente fica desanimado diante da possibilidade de um outro
futuro.”
Mirian França foi transformada pela
delegada e pela mídia cearense em principal acusada do assassinato de uma
turista eurodescendente por meio de fortes pancadas, mesmo sendo fisicamente
frágil e não apresentando marcas de luta corporal. A imprensa local rejeitou
veementemente o argumento construído por sua defesa popular de que Mirian
estaria sendo vítima do racismo que transforma qualquer pessoa negra em
suspeita preferencial dos crimes, mesmo sem provas.
Pela octo-milionésima vez havia-se
que superar dois mitos reforçados pela brutalidade impositiva da informação,
quer sejam, a inexistência do racismo no Brasil e a existência da justiça
imparcial, válida para todos.
Em contrapartida, a imprensa
alternativa, eletrônica, progressista, veiculada nas redes sociais concluiu que
sua ação libertou Mirian França. Mais uma vez, Milton Santos nos socorre na referida
entrevista, diz ele: “Mas se a gente se detêm a pensar na maneira como o mundo
está funcionando, na maneira como os pobres se apropriam da tecnologia... Os
pobres e oprimidos estão fazendo, de uma maneira extraordinária, o uso das
novas tecnologias, no seu trabalho e em seus assaltos, por exemplo, e estão
encontrando e defendendo ideias aí pelo mundo afora e de que a gente fala
pouco...” Ideias de liberdade, associativismo espontâneo, solidariedade, troca
ao invés de compra e venda.
Entretanto, alguns equívocos merecem
ser desfeitos. A Defensoria Pública preocupada com a defesa de direitos de
cidadãs e cidadãos aos quais esses direitos são negados, não fica pescando
casos na internet, não procura o que fazer na internet, ela precisa ser
acionada, alertada, ainda que a mobilização prioritária em torno das situações ocorra
inicialmente via web.
É preciso que as pessoas gastem a
sola do sapato e caminhem até o espaço físico da Defensoria para conversar com
os defensores, ou que gastem pulsos da primitiva telefonia fixa, ou bônus das
redes móveis para fazer uma denúncia, para requisitar acompanhamento de um
caso. É necessário que pessoas, de um modo geral, participantes dos movimentos
sociais, conheçam quem são os defensores com que se pode contar nas diferentes
cidades, estados. Todo mundo que milita na área de Direitos Humanos tem
conhecimento disso, dessa rede existente desde os tempos em que pescadores saiam
para pescar todas as manhãs, composta por defensores e militantes de outras
cidades que informam, “olha, lá em Fortaleza tem a fulana de tal que atua na
defesa dos Direitos Humanos e que dará um tratamento justo ao problema.
Procurem por ela”
No caso Mirian França, muita gente se
movimentou e foi movimentada: organizações de mulheres negras, feministas, de
Direitos Humanos, o coordenador do curso de pós-graduação de Mirian na capital
fluminense, que deslocou-se até Fortaleza, seus amigos e familiares que não
descansaram um minuto sequer, mobilizando todas as redes e recursos imagináveis
(inclusive internacionais) para libertá-la.
E, antes de tudo, houve uma
organização de mulheres negras, chamada Criola, baseada no Rio de Janeiro, que,
ao longo de mais de 20 anos construiu uma história de credibilidade junto à
população negra carioca e brasileira, justamente pela reverberação dessa luta
por cidadania e Direitos Humanos para a população negra, cuja atuação motivou
alguém a entregar uma carta em sua sede, na qual denunciava a situação de
Mirian e pedia socorro. Ali, naquele momento semipresencial e prosaico, a
entrega de uma carta, toda a mobilização pela internet começou, as providências
emergenciais foram tomadas, algumas noticiadas nas redes sociais, outras, não, haja
vista que as pessoas que trabalham com causas humanitárias e cidadãs fora da
internet não têm tempo de atualizar o diário virtual dos passos de seu trabalho
minuto a minuto, tampouco é sua intenção. Sua escola de formação política e
ética prescinde do exibicionismo virtual que, desafortunadamente, pauta a
atuação de muitos.
Então, nem tanto ao mar. As novas
tecnologias de comunicação podem, como asseverou Milton Santos, realizar coisas
extraordinárias, principalmente no campo da divulgação e mobilização de temas
que, sem elas, as novas tecnologias, continuariam soterrados pela imprensa hegemônica,
contudo, o velho e bom movimento social que faz cartazes (não só catarse), usa
telefone, constrói redes presenciais e marcha nas ruas e avenidas ainda tem um
lugar de transformação que não foi (e é provável que não seja) substituído pelo
ativismo de sofá com ar condicionado.
A intervenção política no mundo real
feita no asfalto quente das contradições da realidade continua fundamental além
das curtidas, comentários indignados na levada da boiada e quiçá, dos
compartilhamentos.
Comentários