Fundação Cultural Palmares (FCP) lançará em breve, Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas

Por Cidinha da Silva


A obra apresenta mapeamento robusto da realidade sociocultural do setor do livro, leitura, literatura e bibliotecas (LLLB), transversalizado pelas dimensões de raça e africanidades. Traz a público o pensamento de 48 mulheres e homens, predominantemente negros (90%, 43 autores) sobre o tema LLLB no Brasil, contemplando dimensões preciosas e múltiplas que visam produzir conhecimento qualitativo, consubstanciado em argumentos potentes sobre as relações raciais e de africanidades, visando alimentar as políticas públicas para o setor LLLB, considerando os desafios da encruzilhada do combate ao racismo e da formação do leitor-literário.
O primeiro capítulo é composto por conceitos que costuram todo o livro. O conceito é um aparato que, em dado momento histórico dá conta da disputa de sentidos em torno de uma situação, de uma sistematização de ideias, da definição de um campo. Ele deve ser permanentemente revisitado quando confrontado com novas ideias e situações, frutos da experiência ou da pesquisa.
Os doze conceitos apresentados no livro são búzios de sabedoria abertos no bojo de uma gamela partida ao meio. Em ruidoso Aláfia, eles nos autorizam a oferecer o Padê e caminhar rumo à construção de uma epistemologia que nos abrigue, decifre e represente.
Começamos pelo conceito de Africanidades, elaborado por Eduardo Oliveira, filósofo e professor da Universidade Federal da Bahia. Ele nos ensina que “Africanidades é uma categoria de tempo e espaço conjugada que, compreendida como forma cultural, isto é, as condições epistemológicas donde as ações humanas (e não humanas) se dão e produzem sentido. Cultura como produção de sentido é africanidade como discurso epistêmico. O tempo ampliado (dos viventes e ancestrais) e o espaço difuso (de africanos e seus descendentes semeados pelo mundo) perfazem a trama e a urdidura desse discurso. Discurso, que por sua vez, tem o vetor do tempo voltado para o passado, para a experiência. Experiência que tem como eixo de validação a pragmática e o encantamento. Encantamento que tem na ética de processos liberadores o seu ápice e na ancestralidade o seu corolário. Ancestralidade é o princípio régio das africanidades. É lastro de tempo e espaço em processos de subjetivação, síntese, crítica e criação. É lógica diferencial e transversal, perpassando os vários extratos de enfrentamento e produção do mundo, a um só tempo. Africanidades é uma categoria que compreende e se compreende a partir do mundo cultural africano-diaspórico na superação do racismo e na produção de uma nova regra de justiça social e felicidade subjetiva. É insurreição social e fluidez literária e, assim, vale-se de seus dispositivos ancestrais (beleza, ritmo, gênero, religiosidade, negociação, ginga, encantamento, organização, ironia, coalisão, criatividade, combatividade, sagacidade, diversidade, inovação, tradição, mito, rito, corpo, poética e contemporaneidade). Africanidades são um (re)-encontro consigo mesmo, na dimensão coletiva da vivência ancestral, que tanto nos atravessa quanto tecemos nas micropolíticas do dia a dia e na macroestrutura do enredamento tempo-espaço”.
A seguir, em excerto do texto de Pablo Guimarães, mestre em Estudos de Linguagens pelo Centro Federal de Educação-MG e professor substituto do curso de Letras (Tecnologias de Edição) da mesma instituição que nos apresenta o conceito de bibliodiversidade como “uma noção concreta que aplica o conceito de biodiversidade (diversidade das espécies presentes num determinado meio) ao livro (diversidade dos livros presentes num certo contexto). Ela remete à necessária diversidade das produções editoriais disponibilizadas para o público. O livro de criação é a encarnação da bibliodiversidade, opondo-se ao fenômeno da “best-sellerização” (produção editorial que se baseia essencialmente em produtos produzidos para o maior número, representando uma tomada de risco mínima, e respondendo essencialmente a objetivos financeiros). Talvez se possa atribuir a invenção deste termo a editores ou profissionais do livro latino-americanos, reunidos por ocasião do Salão do Livro Ibero-Americano na Espanha, no final dos anos noventa.”
Cultura negra é o conceito que segue, elaborado por Pedro Neto, Cientista Social e membro titular do Colegiado Setorial de Culturas Afro-Brasileiras do Conselho Nacional de Política Cultural do Ministério da Cultura. Diz-nos Pedro: “Num jogo entre rupturas e continuidades, podemos ressignificar elementos definidores do que é ou não cultura negra. O primeiro é que a cultura negra brasileira é fundada, sedimentada e difundida pelos povos e comunidades tradicionais de matriz africana. A dança, a música, o canto, a performance – indissociáveis – a oralidade, a ancestralidade, a relação com a natureza, a circularidade, a relação geracional, a importância da mulher negra são também outros elementos definidores do que é cultura negra brasileira. O importante é ressaltar e afirmar que há definições de cultura negra. Nossa cultura não pode ser pasteurizada e coberta simplesmente pelo manto da diversidade cultural brasileira. Ela tem filiação, nome e conteúdo.”

O conceito de favela elaborado pela doutoranda em História pela Universidade Estadual de Campinas, Josemeire Alves, nos ajuda a compreender a indissociabilidade entre geografia e política. A historiadora nos alerta que: “Espaços segregados na cidade desde a origem, são geralmente tratados como “problema social” ou – a partir da metáfora médica-higienista que orientou o discurso dos gestores públicos a partir dos anos 1940 –, um “cancro” a ser “extirpado do tecido social”. Seus moradores, quando não invisibilizados, foram considerados durante muito tempo “massa amorfa”; e seu reconhecimento como sujeito de direitos ainda tem sido objeto de muitas lutas: em muitas regiões são considerados “invasores” e o próprio termo “favelado” é utilizado, em diversas situações cotidianas, como xingamento. A desumanização do morador de favela, associada à degradação do espaço e das condições de habitação, devido ao abandono dos poderes públicos, tornou-se prática naturalizada. Na “tradição” conceitual que se instituiu sobre as favelas, além da associação favela/pobreza/moradia de pobres, há outras representações, tais como as que a designam como chaga social, o espaço da falta e da carência e, mais recentemente, como espaço associado à violência e ao narcotráfico; ou no pólo oposto, nas representações que buscam exaltar o lugar e seus habitantes, enunciando-os como exóticos ou míticos: é a favela como lugar da solidariedade, da pureza e da ingenuidade, ou da gente simples e humilde.  Esses padrões de representação perpassam distintos campos da sociedade, dentre os quais os meios de comunicação, o discurso corrente entre as conversações cotidianas, e também os espaços onde são gestadas as políticas públicas”.

Analu Sousa, professora da Universidade Federal da Bahia e Pró-reitora da UNILAB, conceitua letramento. “Numa perspectiva sócio-histórica, o conceito de letramento precisa ser tomado em sua dimensão plural: letramentos. Falar em letramentos nos remete a um conjunto de práticas de usos sociais da leitura, da escrita, oralidade e outras modalidades de linguagem realizados pelos sujeitos, com diversas intencionalidades e em diferentes contextos sociais e culturais pelos quais transitam. Para muito além de saber ler e escrever interessa saber o que os sujeitos fazem com o conhecimento e que importância isso tem para suas vidas. As práticas de uso da linguagem funcionam de diferentes maneiras na vida dos sujeitos e, por isso mesmo, trazem diferentes implicações para as relações de poder nas quais estão imiscuídos e produzem diferentes efeitos nas relações de identidade que se constroem”.

Para definir a literatura afro-brasileira nos valemos da produção do LITERAFRO da Universidade Federal de Minas Gerais que conceitua sinteticamente o tema e nos exime da larga discussão plena de e contradições que o caracteriza e muitas vezes nos rouba o tempo de discussão da literatura propriamente.Um conceito em construção, processo e devir. Além de segmento ou linhagem, é componente de amplo encadeamento discursivo. Ao mesmo tempo dentro e fora da literatura brasileira. Constitui-se a partir de textos que apresentam temas, autores, linguagens mas, sobretudo, um ponto de vista culturalmente identificado à afrodescendência, como fim e começo. Sua presença implica redirecionamentos recepcionais e suplementos de sentido à história literária canônica”.

A literatura periférica é conceituada por Mariana Assis, mestra em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas. Conta-nos Mariana: “A partir do final dos anos 90 inicia-se, nas periferias de São Paulo, uma importante mobilização estético-política, aos moldes do Movimento Cultural Hip Hop, porém, caracterizada por uma massiva produção literária. A literatura marginal, periférica, da periferia ou marginal/periférica vem oferecer uma proposta totalmente nova de estética e sujeitos literários. Do ponto de vista político-ideológico, sua grande contribuição foi deslocar sujeitos marginalizados socialmente – sobretudo negros e negras pobres – da posição de objetos da literatura – personagens estigmatizados que corroboram lugares sociais e preconceitos – para a posição de sujeitos da literatura – romancistas, contistas e poetas que criam personagens, dessa vez caracterizados por suas próprias experiências e retratando sua realidade, falando de si e por si. Quanto às características estéticas, a multimodalidade e multissemiose, velhas conhecidas dos admiradores do hip hop, adquirem cores mais inquietantes ao articular-se com o gênero mais sacralizado da literatura: a poesia escrita. A publicação de livros que valorizam e ressaltam a oralidade, a música, a corporalidade presentes na formação dos autores nos obriga a repensar, até mesmo, posturas teóricas quanto à análise e crítica literárias”.
O conceito de oralitura, de riqueza extraordinária para interpretação da arte negra de um modo geral e principalmente da literatura nos é apresentado por Marcos Fabrício Lopes da Silva, poeta de professor de literatura brasileira. “Cunhado por Ernst Mirville, em 1971, o termo “oralitura” foi a proposta teórica sugerida pelo estudioso para englobar os enredos narrados pelo contador crioulo que, na época da escravidão, durante a noite, relatava histórias inspiradas em vestígios do passado. Tratava-se de “palavras noturnas” dedicadas a contemplar o sofrimento dos escravizados e os mecanismos de resistência negra, conformando, assim, uma manifestação de contracultura, em oposição ao sistema de escravidão. Na oralitura, projetou-se uma forma estética alternativa, que reconhecia a legitimidade da perspectiva negra como autoria importante nos fazeres literários e históricos que compõem o patrimônio cultural da humanidade. Leda Martins, por seu turno, propõe uma leitura do princípio da “oralitura”, considerando a contribuição da autoria negra para um fazer literário ao mesmo tempo oral, escrito e performático. Conforme explica a estudiosa: “o termo oralitura, da forma como o apresento, não nos remete univocamente ao repertório de formas e procedimentos culturais da tradição linguística, mas especificamente ao que em sua performance indica a presença de um traço cultural estilístico, mnemônico, significante e constitutivo, inscrito na grafia do corpo em movimento e na velocidade”.
O conceito de periferia é elaborado por Érica Peçanha, antropóloga e pós-doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo. Ela nos ensina que:O uso do termo periferia remete a uma série de reflexões acadêmicas e ações públicas que foram elaboradas nos anos 1970 acerca do contexto urbano brasileiro. Em substituição às ideias de “subúrbio” e “bairro pobre” que figuravam no vocabulário de intelectuais e gestores, periferia emergiu para nomear áreas produzidas no processo de expansão das cidades e que foram ocupadas por migrantes, trabalhadores de baixa renda, desempregados e negros, a partir de loteamentos irregulares e casas autoconstruídas de maneira precária. Afastadas geograficamente e compêndios das condições de vida opostas àquelas encontradas nos centros urbanos, essas regiões ficaram marcadas pela falta ou insuficiência de infraestrutura (como redes de saneamento, luz elétrica e asfalto) e serviços públicos básicos (educação, atendimento à saúde, transporte coletivo etc.), mas também por suas formas particulares de organização social, relações de sociabilidade e lazer, produção cultural, associativismo e mobilização política. Ao se falar de periferia nos dias atuais é importante considerar que o termo pode remeter a conjunturas diversificadas nos níveis conceitual e empírico, além de mobilizar múltiplas representações, práticas e identidades. O que parece relevante, contudo, é sua pertinência para se referir a certa realidade que ainda concentra a população marginalizada econômica, racial e socialmente, e que apresenta restrição ao exercício da cidadania, um menor número de equipamentos e serviços públicos, maior percurso para o trabalho e de vulnerabilidade a riscos ambientais quando comparados a bairros historicamente tidos como centrais ou nobres. Ou mesmo, sua legitimidade interpretativa e operacional quando estão em jogo outras referências geográficas, culturais, econômicas e políticas que podem ser relacionadas a algum tipo de centralidade, especialmente no discurso construído por sujeitos individuais e coletivos que articulam sua atuação político-cultural no sentido de ressaltar pertencimento e formas de compreender e intervir nas cidades, tais como movimentos artísticos populares como o hip hop, a literatura marginal-periférica e o cinema de quebrada”.
Josemeire Alves, generosamente, apresenta outra contribuição fundamental ao construir o conceito de quilombos urbanos para esta publicação. A historiadora nos diz: A noção de “quilombos urbanos” é uma construção que se insere – como o próprio conceito de quilombo –, nas lutas pelo reconhecimento de direitos territoriais das populações afrodescendentes. Nesse sentido, é possível tomar, a ambas as expressões, como referentes a categorias em disputa, por diferentes sujeitos e de acordo com perspectivas e interesses tão diversos quanto os do âmbito jurídico, acadêmico e político. No Brasil contemporâneo, especialmente a partir da Constituição de 1988 (Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT CF88), o Estado reconhece os direitos à propriedade definitiva dos territórios ocupados pelos remanescentes destas comunidades e prevê a emissão de titulação definitiva. As disputas em torno da efetivação deste direito são árduas, envolvendo a resistência dos que, ao longo de décadas, ocuparam indevidamente tanto as terras originalmente herdadas por essas antigas comunidades quilombolas quanto aquelas adquiridas por ex-escravizados ou libertos, por herança ou compra. Muitas dessas propriedades coletivas encontram-se, atualmente, em terrenos urbanos e têm reivindicado seu status de “quilombo urbano”, com vistas a garantir os direitos previstos constitucionalmente. Mas “quilombo urbano” é também autoatribuição que se fazem as comunidades de favela das grandes cidades brasileiras, cuja população, majoritariamente negra, sofre, historicamente, os impactos da segregação socioespacial, econômica e racial operada nas sociedades capitalistas. “Quilombo urbano” é, num contexto de lutas pelo direito à cidade, evocação de uma tradição de resistência de mulheres e homens negros que, por meio das sociedades quilombolas do passado, atuaram como sujeitos da própria liberdade”.
Outro conceito fundamental desta obra que, como dito, situa-se na encruzilhada do combate ao racismo e da formação do leitor-literário, é o de racismo institucional. Para defini-lo nos valemos dos aportes do Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI), implantado no Brasil em 2005. Ele define o racismo institucional como “o fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica”. Ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes do preconceito racial, uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações”.
Por fim, este Africanidades compreende o conceito de relações raciais como relações societárias conflituosas decorrentes do racismo e da discriminação racial nas sociedades contemporâneas, bem como as dimensões objetivas e simbólicas da luta para combatê-los.
A partir desta publicação, A Fundação Cultural Palmares propõe um diálogo do mais alto nível com o Plano Nacional do Livro e Leitura, em vigor desde 2006; com os planos municipais do livro e leitura já concretizados e com aqueles (a maioria) ainda em processo de elaboração; com a Diretoria do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas e demais secretarias  vinculadas ao Ministério da Cultura bem como aos outros ministérios; com o Colegiado Setorial do Livro, Leitura e Literaturas; com o Programa Mais Cultura; com os projetos de lei afeitos ao campo LLLB; com o Programa Leitura Para Todos; com a Rede Brasil de Bibliotecas Comunitárias, outras redes autônomas de bibliotecas públicas, escolares e/ou temáticas brasileiras; com a Frente Parlamentar em Defesa do Livro no Congresso Nacional; com as Frentes similares existentes em Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais dispersas pelo território nacional; com a Lei Orgânica dos municípios; com os órgãos executivos específicos ligados às questões da comunidade negra; com a sociedade civil como um todo, mas, especialmente, com as organizações negras, as instâncias de arte, cultura e educação, assim como com os Pontos de Cultura dedicados ao LLLB. Finalmente, estamos preparados para dialogar com os sujeitos fundantes de todo esse processo, ou seja, escritoras e escritores, leitoras e leitores negros e periféricos.


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