Sobre #ParemDeNosMatar!
Por *Gabriela Gaia
Ler as “crônicas urgentes” contidas em #ParemDeNosMatar foi
uma tarefa difícil, ao mesmo tempo que prazerosa. Sobre a tarefa difícil,
discorrerei na minha fala. Mas sobre a dimensão do prazer, essa gostaria de
ressaltar logo de cara e responsabilizar tão somente a habilidade com que
Cidinha escolhe seus arranjos de palavras para tornar comunicável e possível
para o leitor, deslizar, ainda que com alguns engasgos e tropeços (por conta da
dureza dos temas) pelas 240 páginas do livro. No encerramento, ela faz uma
linda homenagem (assim percebo) à Lívia Natália e sua poesia ao afirmar que a
poesia traz desejo de escrita de mais poesia por parte de quem a está lendo. Gostaria
de dizer que também suas crônicas nos inspiram a querer dar forma escrita às
nossas angústias e pensamentos, nem tão bem articulados quanto os de Cidinha,
como uma forma libertá-los desse enclausuramento íntimo, pessoal e expô-los de
alguma forma.
E acho que foi isso que tentei fazer aqui, depois de ler o
livro e pensar em como poderia responder ao convite inesperado de comentar esse
livro tão caro e tão urgente. Então escrevi esse texto com essa intenção de
tentar fixar aqui as coisas que foram emergindo com a leitura do livro e
encontrando ganchos com outras tantas que já gravitavam por aí na minha cabeça.
Essa fala é um pouco isso...
Diante das tantas urgências que atravessam o #ParemDeNosMatar,
destacaria logo de cara a CORAGEM e a GENEROSIDADE. São duas dimensões que
muito admiro na escrita de Cidinha. Essa disposição à exposição para nomear
nossos mortos, apontar as situações de racismo, gastar tempo em refletir e
“responder” aos abusos e absurdos cometidos pela elite branca e patriarcal, e
encontrar nisso tudo força para construir reflexões e críticas na literatura
(fico pensando se esse seria mesmo o fluxo das coisas, se das reflexões e
críticas resultam sua produção literária - ainda que não como uma camisa de
força – ou se a produção literária é o que motiva, movimenta, impulsiona suas
reflexões e críticas. Talvez essa seria já de cara uma primeira pergunta que
gostaria de fazer).
Ainda sobre isso que Cidinha faz, de fazer questão de chamar
pelo nome nossos mortos sem nome nos noticiários e jornais produzidos pela
grande imprensa... Douglas Rafael (DG),
Claudia da Silva, Amarildo, Davi Fiuza, Kaíke Augusto, Roberto de Souza Penha,
Carlos Eduardo de Souza e Cleiton Correa de Souza(os três meninos do Morro da
Lagartixa), Natanael de Jesus Costa (um dos 13 do Cabula). Cidinha inverte a
lógica do esquecimento, ao qual estão submetidos todos os pretos e pobres, e
dá-lhes a dignidade da morte. Semelhante ao que faz Rosana Paulino, artista
visual paulistana, em sua obra Assentamento, na qual tece na fotografia
impressa em tecido e tamanho real, uma negra anônima documentada por um
expedição naturalista no final do século XIX, liderada por Agassiz, que tinha
por objetivo “catalogar” e tirar medidas específicas do corpo negro para
comprovar a teoria da degenerescência da raça (de que os negros são
biologicamente inferiores aos brancos).Nessa imagem da negra anônima que visava
desumanizá-la, Rosana Paulino delicadamente borda um feto no seu ventre, raízes
em seus pés e um coração em seu peito. É uma imagem linda, que particularmente
admiro, e que faz esse movimento, na minha leitura, de conferir humanidade a
esse sujeito aniquilado pelas teorias de superioridade da raça do final do
século. Acho que Cidinha faz um movimento nessa mesma direção quando não deixa
que esquecemos nossos mortos e chama-os pelo nome.
Aos nomes já citados no livro, poderíamos acrescentar outros
tantos. Mais precisamente um novo nome a cada 23 minutos... E isso é
assustador. Ou talvez não, talvez não consigamos nomeá-los, o que é talvez
ainda mais assustador... Sumimos aos montes e às vezes com poucos rastros.
Sumimos porque a banalização da vida e a naturalização da morte negra se
arrasta e se perpetua (não sem protestos) secularmente. O trato com a
morte/vida do negro atravessa e aproxima cruelmente dinâmicas que se alargam no
tempo. Na manhã do dia 14 de dezembro de 2016 - conforme nota publicada pelo
Movimento Sem Teto da Bahia no final do ano passado - policiais da 12ª
Delegacia de Policia Civil de Itapuã identificaram um cemitério clandestino com
diversos corpos em uma área próxima à rodovia CIA-Aeroporto. Aproximadamente 15
corpos. 15 corpos de pretos despejados em vala rasa e a céu aberto, tal qual
relata Edison Carneiro em texto publicado em 1964 sobre o trato com o negro
morto no período colonial: “O negro que literalmente não tinha onde cair morto,
que ficava à mercê dos urubus”, que nos períodos de maior intensidade do
tráfico, era “fácil de substituir, não merecia consideração alguma”. O negro
desvalido, que quando escapava da “vala comum”, destinava-se em geral a pastos
dos urubus.
São mais 15 corpos (sem nome) na lista.
Ainda em dezembro de 2016, no dia 27, Claudio Oliveira,
morador da Gamboa de Baixo, teve sua vida ceifada atingido pelo desmoronamento
de parte de um viaduto próximo ao Forte de São Pedro, em obra executada pela
Prefeitura. Vida interrompida pela negligência do poder público para com a vida
da população pobre e negra da cidade, para a qual se abre mão dos gastos com
quaisquer mecanismos e medidas de segurança e proteção.
Mais um nome para essa lista.
Quantos são os que se revoltam com as mortes dos pretos? Somos
muitos. Entre nós, somos muitos. E Cidinha nesse livro-cartografia do genocídio
e do racismo, mapeia nossos mortos. Articula nossas dores e ordena suas/nossas
as palavras em uma tapeçaria discursiva que habilmente alinhava suas/nossas
perdas em texto.Ela grafa nossas sobrevivências enquanto atordoados
percebemos o esfacelamento do que há ainda de humano na civilização. Digo que
ela articula “nossas/suas” palavras e dores porque a escrita de Cidinha, apesar
de própria e particular, afeta seu leitor, porque se produz em relação com o
outro. Não é uma escrita autista, nem ensimesmada em crises narcisistas (ainda
que sejam legítimas todas as formas de crises e de escrituras).
Eu discuto cidade, a arquitetura enquanto materialização de
respostas e demandas de uma sociedade, o urbanismo enquanto lógica/campo
disciplinar que “baliza” discursos de cidade, o controverso e falido planejamento
urbano- revestido da falácia da participação popular nos últimos tempos, vide
aprovação do último PDDU de Salvador. Em todos os espaços todos
institucionalizados por onde em geral circulo, esses lugares de onde se
produzem os discursos oficiais de cidade e as narrativas“oficiais” que balizam
os argumentos para a produção dos projetos, planos e intervenções na cidade, os
territórios negros - e mesmo a presença negra na cidade – são sistematicamente
abafados, ou melhor, são construídos de forma a forjar e articular a racialização
da violência com a criminalização dos territórios das favelas, comunidades,
quebradas, bairros populares, ocupações, etc.
A presença negra só é destacada,
evidenciada, quando esta pode ser apropriada enquanto elemento que agregue
valor à espetacularizada cena do turismo que substitui a inserção legítima pelo
reconhecimento e pelo pertencimento do negro aos seus territórios pela
encenação, pela construção forjada de um cenário festivo para consumo de
mercadorias, estampados em outdoors de “Bem vindo à Bahia”.
Não é por acaso que é na cidade que se passam quase todos
(senão todos) os relatos escritos em #ParemDeNosMatar.
Os territórios negros são tratados pela política pública e
pela elite branca e patriarcal, proprietária de terras e dona da indústria
imobiliária e da construção civil, como “caso de segurança pública”, cuja
existência deve ser condicionada e contingenciada aos guetos. Qualquer
movimento diferente tende a ser munição para sua eliminação, aniquilamento,
devastação mesmo da presença negra indesejada nas áreas de maior lucratividade
na cidade, processo conhecido como “gentrificação”: saem os pretos, saem os
pobres, deslocados como objetos obsoletos, indesejados, descartados em tantos
quanto forem necessários “quartos de despejos” pela cidade. São autorizados a
ocupar a cidade os “cidadãos de bem”, as “gentes diferenciadas”, coroneizinhos,
e sinhazinhas herdeiras da casa-grande. Mas somos quilombos, somos resistência
e continuamos aqui, resistindo. Somos Gamboa de Baixo, somos Ladeira da
Conceição, Somos Ocupação Manuel Faustino, Ocupação Luisa Mahin, Somos
Saramandaia, Quilombo Rios dos Macacos, Quilombo Dom João, entre tantas outras
comunidades e movimentos negros de resistência que insistem em disputar essa
cidade desigual há tanto tempo...
Se escrever é uma maneira de sangrar, como nos lembra
Conceição Evaristo, e teorizar é uma forma de curar, como diz Bell Hooks,
Cidinha constrói em #ParemDeNosMatar esses dois movimentos sem vacilar e isso é
um grande aprendizado. Nas estratégias adotadas para recontar aquilo que não
deveríamos esquecer, ela não se furta da urgência da escrita-denúncia e ainda
assim, engenhosamente, articula entre essas dores todas, alguns sinais de
esperança, generosamente partilhados com seus leitores.
*Gabriela Gaia é professora na
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia.
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