Trecho de: Cidinha da Silva e a crônica como ato de nomear



Por *Saulo Dourado

São vários os subtemas dentro de um grande tema, em circunstâncias diversas. O cronista também é um rebatedor: a realidade se lança plural e inverossímil, e a crônica a devolve menos bruta, talvez mais brutal, tangida por olhar e saliva. O cronista cria veículos de sensações e também organiza e interliga acontecimentos, dá linhas de pensamentos. #Parem de nos matar!, então, enquanto uma compilação de dezenas de textos, está sob o desafio de traçar algum caminho, de ligar uma ideia à outra, e ganhar unidade. Consegue. A princípio, pensei que fosse uma ordem cronológica dos acontecimentos, depois vi que era por temas, e talvez sejam os dois movimentos se costurando. Misturou-se a tal ponto que um texto mais denso, como “Tempo Novo!”, que vai do racismo no futebol ao golpe parlamentar de 2016, seja coeso com o belo “Matias e o Boneco de Star Wars”. E mesmo neste, crônica supostamente mais leve, há um cuidado com os detalhes:

Sensibilizado, John Boyega postou o retrato do menino portando o boneco e escreveu no Instagram: “Tempo para ser grato. Do que você carrega nas mãos ao potencial de sua mente, você é um rei homem jovem (ou pequeno homem)”. Sim , ele disse “Young Man”, não disse “little boy”. Os homens negros afirmados dos EUA se chamam de “man”, tenham a idade que tiverem. Desconstroem assim a expressão “boy” do tempo do escravismo e mesmo do período posterior de segregação legal.

Uma única expressão remete a toda uma história. Eu não conhecia o uso de boy para escravos de qualquer idade na América do Norte. É o mesmo que os gregos faziam, dois mil e tantos anos antes, que chamavam todos os escravizados de “crianças”. Por aprendizado também, conheci no livro a história das estatuetas de Oscar a atrizes negras e os papéis premiados: uma criada, uma trambiqueira, a esposa de um presidiário, uma empregada doméstica, uma escrava... E no tema da aprendizagem, destaca-se a análise da prova do ENEM e o ritual de sua realização para trabalhadoras, em “Aos que ficam nos portões do ENEM”, o que me fez lembrar de nunca ter lido uma análise tão cotidiana sobre a prova.

*Escritor, professor de Filosofia e Sociologia

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