Entrevista de Ricardo Aleixo ao Diário do Nordeste

(Por: Carlos Augusto Lima) "A idéia é mudar um pouco, e sempre que possível, a freqüência deste espaço. A idéia é trazer para cá uma conversa, algumas discussões ou simplesmente um bom papo. Abrir um território possível num ambiente árido e numa carência de lugares para pensar a produção contemporânea de literatura-cultura. Sempre que possível um nome e um trabalho relevante, gente que tem pensado, feito, transitado entre territórios vários, daqui e do país à fora. Os processos criativos, as leituras, a constante aprendizagem, a problematização da escrita. Para começo de conversa, com vocês, o poeta e multi-artista mineiro Ricardo Aleixo. Nascido em Belo Horizonte (1960), Ricardo é autor de, entre outros, ´Trívio´ e ´Máquina Zero´. Compositor, performer, desenvolve pesquisa e trabalhos que misturam a palavra escrita, o corpo, instalação, áudio arte, dança e onde mais for possível desdobrar sua inquieta linguagem. A partir de agora, com as bençãos de Exu, os caminhos estão abertos. Laroyê! 1 - Uma questão sobre a produção, seu ´modo de fazer´, que se desdobra em duas: a) Quais os apetrechos (autores, obras, idéias) do maquinário que fabrica suas obras? b)Você pensa primeiro a imagem, o som, o objeto, a palavra. Há uma linguagem que é seu ponto de partida? Rique — Os autores que me acodem nos momentos de crise (talvez eu devesse dizer: os que alimentam minha interminável crise) são muitos, sempre. De uns dez anos para cá, venho lendo com enorme satisfação pensadores como o biólogo Humberto Maturana, o geógrafo-pensador Milton Santos, o arquiteto Peter Zumthor, o inclassificável Gilles Deleuze. Leituras recorrentes, no campo da ensaística são, já há bem mais tempo, por exemplo, Walter Benjamin, Edouard Glissant e, mais que qualquer outro, o grande estudioso das poéticas da voz, Paul Zumthor. E há os poetas, evidentemente: desde os (para mim) inevitáveis Augusto de Campos, Sebastião Nunes, Affonso Ávila, Décio Pignatari, Vladímir Maiakovski, e. e. cummings, Gertrude Stein, Oswald de Andrade, John Cage, Hans Magnus Enzesberger, Paulo Leminski, Armando Freitas Filho, etc. Há Rosa, Euclides da Cunha. Machado, claro, e ainda Kafka, Joyce, Beckett. Há os cineastas-pensadores-poetas (Godard, Greenaway, Stan Brakhage, Bressane, Glauber), os artistas visuais (Hélio Oiticica, Waltercio Caldas, Cildo Meireles, Lygia Pape, e muita gente mais. Quanto ao meu processo de criação, é totalmente aberto e indisciplinado. Posso partir de um som indefinido ou de uma nota musical, de uma cor, uma letra, uma palavra, uma fotografia. Minha meta, no mais das vezes, é criar uma obra tão aberta que eu possa fazer com que os elementos que a compõem transitem por outros códigos, traduzindo-se em novas configurações. Poucos são os casos de trabalhos meus em que não tentei, pelo menos, fazer com eles alguma outra coisa. Não exagero quando digo que entendo tais práticas como exercícios radicais de alteridade, em contraposição aos discursos que pregam a busca de uma identidade única, fechada e coesa. Explicando melhor: cada vez busco menos o conforto de uma linguagem que mostre o possível ´amadurecimento´ do meu trabalho, e mais o desconforto das zonas de risco em que me vejo obrigado a aprender ou reaprender o beabá daquela linguagem. 2 - Sua produção poética é muito vinculada a uma tradição ´verbivocovisual´, que provém da poesia concreta, vanguardas etc. Ao mesmo tempo, você não se priva de provocar o poema de linha mais ´clássica´, metrificado, rimado, discursivo, satírico. Definitivamente, a liberdade é a prova dos nove? Rique — Embora eu reafirme o tempo todo a minha formação (como processo em curso, não como etapa já concluída) baseada na idéia de experimentação, jamais deixei de me interessar por outras práticas e possibilidades de criação. Em suma, apesar de explorar cada vez mais sonoridades inusuais, produzidos com a voz, com objetos do cotidiano ou com meu ´laptop zoador´, continuo a compor sambas e canções ao violão, sozinho ou com parceiros como Zeca Baleiro, Juarez Maciel, Maurício Tizumba e outros. Afinal, cresci ouvindo minha mãe, Íris, cantar todo aquela beleza do repertório antigo da nossa canção popular. Como eliminar tudo isso de minha sensibilidade? Simplesmente não há como. Sim, a liberdade (sem a qual de nada servirá a alegria) é a prova dos nove. E o maior desafio, hoje, para o criador, quando tudo parece já ter sido feito, ao mesmo tempo que, com o maior acesso aos meios tecnológicos, temos a sensação, outra vez, de que ainda há muito por se fazer. 3 — Quando nos deparamos com a apropriação de sonoridades, visualidades, grafismos, corpo e sensações diversas (como você faz com seu trabalho), como é possível mensurar uma potencialidade criativa, já que estamos lidando com algumas linguagens que tendem à dispersão. Como separar o vale-tudo da ´qualquer imagem´, grito, rabisco qualquer daquilo que está inserido como possibilidade de arte? Rique — Penso que a tendência à dispersão é um dado da criação contemporânea que exige reflexão mais detida. Por lidarmos com processos bastante complexos, calcados na hibridização e na mestiçagem sígnicas, é preciso levar em conta a possibilidade do espectador se perder em algum ponto da recepção das obras. Ninguém percebe TUDO o que se processa nos ´espaços-entre´ produzidos pelos processos intermídia. E a dispersão, sobretudo em tempos de fronteiras que ameaçam se fechar novamente, podem constituir-se em um eficiente dispositivo contra os finalismos e essencialismos que tomam conta do cenário cultural e político contemporâneo. Costumo brincar com o termo ´obras permanentemente em obras´ para definir o esforço adicional que é cobrado, hoje, daqueles indivíduos que abriam livros ou compareciam aos museus de arte, às salas de espetáculo e de cinema certos de que já receberiam ´mensagens´ prontas para consumo imediato. Esse tipo ficou sem lugar, no contexto da arte contemporânea. Mas há, sim, caro Carlos, um perigo na tendência à dispersão: que esta se rotinize tornando-se como que a única via possível de realização artística. Pessoalmente, tento resistir ao que, em meu trabalho, por ventura aponte para esse tipo de ´dispersão´, recuperando práticas criativas que demandem estudo e treino contínuos. E mesmo assim, veja, não me sinto absolutamente livre do risco de misturar alhos e bugalhos e, pior, de oferecer esses ´produtos´ na praça como se fossem algo a que os comuns mortais não têm acesso. Talvez nossa única saída seja refazer ad infinitum a pergunta fundamental que nos foi legada pela modernidade: o que é arte? 4 — Na construção do seu trabalho você sempre fez questão de desenhar uma proposição ética para ele, que passa por uma inserção política a respeito da literatura, da profissionalização da escrita, do escritor etc. Que olhar você projeto sobre o ambiente da literatura, e de forma mais ampla, da arte no país, a respeito desses problemas? Rique — Penso que a literatura e as demais formas de arte têm, como função básica a proposição de problemas, mais que de respostas, que contribuam para que a sociedade redefina os termos do debate sobre as condições de sua própria formação (entendida como um processo, insisto) e permanência. Em outras palavras, ao defender a ´profissionalização´ do artista (sua pergunta enfoca a literatura, mas prefiro ampliar o arco da resposta, por lidar também com as outras artes), aponto para um paradoxo, que é a hipótese de se ter, como conseqüência, a valorização daqueles cuja importância na sociedade é definida bem mais por sua movência, por sua entrega gozoza à errância e à deriva do que pela fixidez de suas posições. O artista, como o vejo, como o idealizo, talvez, é aquele que optará sempre pela perversão, pelo caminho torto, escuro, pleno de dobra e desvios. Pelo sim, pelo não, prefiro apostar que uma verdadeira política de apoio às artes passará, necessariamente, pela valorização dos criadores sem que se exija deles mais do que o produto desinteressado de sua imaginação. Luto, por isso mesmo, ciente dos riscos a que todos estaremos expostos. Mas me diga: não é bem pior não fazer nada? Se me desagrada a figura do escritor como um ´funcionário da escrita´, tampouco me apraz a terrível imagem do cadáver de Cruz e Sousa, conduzido de Leopoldina, no interior de Minas, para o Rio de Janeiro, num trem de carga. É isso".

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