Outra entrevista

(Entrevista de Cidinha da Silva para Marissel Hernandez, estudante portoriquenha de literatura luso-brasileira e espanhola) Na literatura brasileira é possível perceber a influência de escritores negros na luta contra a descriminação. Qual é a relação da sua literatura com os movimentos afro-brasileiros de agora? Cidinha: Minha formação política se deu no Movimento Negro, mais especificamente em uma organização feminista de mulheres negras, chamada Geledés – Instituto da Mulher Negra, na qual atuei por 13 anos, de 1991 a 2004. Depois disso, junto com um grupo de outras mulheres negras e feministas fundei o Instituto Kuanza, em 2005. Por aí dá para ver que sou fruto do Movimento Negro. Antes de mergulhar de cabeça na produção literária, escrevi e publiquei diversos ensaios sobre relações raciais e de gênero, oragnizei um livro que está na 3ª edição, “Ações afirmativas em educação: experiências brasileiras” e sou co-autora de outros cinco. É dito que o negro esteve invisível no processo histórico e social da sociedade brasileira: você acha que no século XXI isso tem mudado? Que espaços tem conquistado o negro, se algum? Cidinha: O Movimento Negro é um movimento social vitorioso no Brasil, embora sejam vitórias de extensão e profundidade menores, se comparadas com o Movimento Feminista, por exemplo, e talvez por isso não sejam tão visíveis. Há conquistas importantes no campo dos direitos humanos e na área legislativa, a criminalização da prática de racismo é a principal delas. O investimento pessoal e familiar na formação acadêmica de setores significativos da comunidade negra, as ações afirmativas para promover o acesso, a permanência e o sucesso de estudantes negros em boas universidades, a modificação da LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação,com vistas a incluir a obrigatoriedade dos conteúdos de história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos escolares, são outros exemplos de conquistas importantes. Mas todas as conquistas só foram possíveis devido ao crescimento, fortalecimento e consolidação das organizações negras brasileiras que têm se perenizado. Hoje, são muitas as organizações que contam com 10 anos de existência sólida e atuante, 15, 20, 21, 25 anos ou mais. Isto tem sido fundamental. Em que medida a representação do negro se altera quando passa a ser feita pelos próprios negros? Cidinha: A mudança é profunda, passa-se de objeto a sujeito e sujeito que tem as rédeas da própria história nas mãos. E isso acontece não só pela experiência do vivido, mas por haver um compromisso de subversão, de sublevação do ethos de subalternidade e construção de perspectivas altaneiras e vitoriosas para personagens e situações. Há o compromisso de trazer à luz a humanidade em sua inteireza. Na sua obra o negro é objeto o sujeito? Cidinha: Sujeito, por suposto. Se eu, uma mulher negra, vier a produzir uma literatura que objetifique o negro, que o desumanize ou amarre a estereótipos – coisa que a literatura branca fez e faz com maestria e crueldade – então minha produção não poderá ser considerada literatura negra. A enunciação negra não pode repetir os modelos brancos de opressão e é recomendável que não imite outros também. Não considera que às vezes a auto e sobre valorização da condição negra como antagonismo ou oposição da condição branca pode ser perigosa na medida que poderia chegar a ponto de tratar o negro como “o outro” dando espaço a algumas classificações que admitem o jogo de preconceito? Cidinha: Não sei se compreendi bem a pergunta e, como não tenho qualquer fundamentação como crítica literária, responderei como leitora de literatura negra e produtora recente dessa literatura. Entretanto, esta seria uma boa pergunta para fazer ao Oswaldo de Camargo. Penso que houve um momento inicial na literatura negra contemporânea, no qual, a mencionada oposição talvez tenha estado muito presente por dois motivos: primeiro, a necessidade de responder a uma literatura branca hegemônica, que nunca se pensou adjetivada – imaginava-se apenas “literatura” – e os escritores e escritoras negros tiveram a necessidade de demonstrar que as coisas não eram como se pensava. Segundo, talvez tenha havido respostas a certas cobranças feitas pelo Movimento Negro, quiçá pelos próprios escritores e escritoras para que se produzisse uma literatura negra engajada, que respondesse à luta racial travada na sociedade abrangente. Penso que a literatura negra produzida nesta primeira década do século XXI goza de mais liberdade e fluidez, graças aos que abriram caminho, tanto na literatura negra, quanto no Movimento Negro. Achei interessante a pergunta do conto Amai-vos uns aos outros; a amargura do negro é a causa principal do racismo? De onde surge esse pensamento? O correto seria dizer “racismo é a amargura do negro”? Cidinha: Quando escrevi a história mencionada, não estava preocupada em produzir uma assertiva correta ou condizente com aquilo que penso. O texto completo é uma pergunta feita por quem narra a história: “VOCÊ NÃO ACHA QUE ESSA AMARGURA QUE O NEGRO CARREGA NO PEITO É A CAUSA PRINCIPAL DO RACISMO?” A pergunta tem a força da narradora e muita gente a confunde com uma afirmação da autora. Eu, como autora, ponho uma pergunta na boca de quem narra para convidar olhos e ouvidos de quem lê a pensar, a refletir sobre o absurdo de imputar a quem é alvo do racismo, a culpa pela discriminação sofrida. Não sei se consigo o efeito desejado, o convite à reflexão foi feito. Sua obra é feminista ou sobre o feminino? (Qual e a relação do feminismo brasileiro com outros feminismos? ) Cidinha: Minha formação é feminista e isso de alguma forma ou de muitas formas está presente em minha literatura. Gosto também de visitar atitudes e mundos ditos femininos com o olhar crítico de mulher definida por meus variados pertencimentos: racial, de orientação sexual, político, sócio-economico-cultural, etc. Sobre a relação do feminismo brasileiro com outros feminismos, isso daria um tratado e não me parece que esse seja o foco da entrevista, tampouco estou com ânimo ou tenho conhecimento de pronto, disponível em meus arquivos mentais para acionar agora. Entretanto, penso que valha a pena mencionar o processo de construção de uma teoria feminista negra no Brasil, em curso desde as reflexões de Lélia Gonzáles, ainda nos anos 70. Tenho a impressão de que o feminismo negro estadunidense e latino-americano precisa ler Lélia, pois muito do que se pensa ter sido a invenção da roda dos anos 90 para cá, Lélia já havia dito, só que em português e emitindo sua voz do Brasil, enquanto território de construção do pensamento, mesmo que ela tenha viajado bastante e tenha tido certa possibilidade de divulgar as próprias idéias. O conceito de amefricanidade, por exemplo, formulado por ela, está por ser estudado, compreendido e apropriado, principalmente pelas mulheres negras da América Latina. Lélia tem muitas seguidoras no Brasil, em certa medida, desbravadoras como ela, tais como Sueli Carneiro, Fátima Oliveira, Luiza Bairros e Alzira Rufino. Há também gerações mais novas como a de Jurema Werneck e Rosália Lemos e novíssimas como Flávia Rios e Jaqueline Costa, além das inúmeras garotas negras que, em trabalhos de iniciação científica e dissertações de mestrado, espalhados por todo o Brasil, têm refletido e escrito sobre o feminismo negro ou em uma perspectiva feminista negra. Em que medida a representação que você faz rompe com outras representações estereotipadas da mulher e do homem negro? Cidinha: Não sei. Responder a essa pergunta implicaria em análise comparativa de outros textos de mulheres e homens negros, mais adequada a leitores e críticos do que a mim. Posso falar sobre meus objetivos: tenho muito interesse pela humanidade de minhas personagens, persigo isto. Por que o movimento afro-brasileiro procura o diálogo com África, Poderia falar um pouco sobre a falta de comunicação entre os paises afro-caribenhos e afro-hispanoamericanos. Por que existe um silencio entre o Brasil e seus vizinhos? Cidinha: Existe uma África mítica que alimenta nosso imaginário e uma África contemporânea que só tivemos chance de conhecer a partir da luta de independência contra o colonialismo das potências européias. E mesmo essa África contemporânea, acessamos por leitura bibliográfica, afinidade ideológica e imagens estereotipadas e folclorizadas de TV. A luta pela libertação dos países africanos, principalmente os de língua portuguesa foi concomitante à nossa luta contra a ditadura e também à reestruturação do Movimento Negro brasileiro no período contemporâneo. Os grandes líderes da luta emancipatória africana nos inspiraram, nos acalentaram, fizeram-nos acreditar que era possível descolonizar países e mentes. Por outro lado, o Brasil, essa imensa nação de língua portuguesa, é bastante arrogante quanto aos vizinhos hispano-americanos. Em geral, achamos que nos bastamos e pronto. E, se a comunicação é difícil com o castelhano, imagine com o inglês do Caribe? Só que aqui a comunicação não é obliterada pela nossa arrogância, mas pela falta de domínio do inglês. Entretanto, a partir de 1994, por iniciativa de várias organizações negras do Uruguai, Colômbia, Brasil e Peru, dentre outros países latinos, iniciou-se um processo de diálogo entre os afro-descendentes nas Américas que culminou com a participação incisiva e frutífera das organizações negras da América Latina e Caribe na III Conferência Mundial Contra o Racismo, realizada em Durban, África do Sul, em 2001. Numa paráfrase a Romero Rodrigues, líder negro uruguaio, “iniciamos a Conferência como vítimas do racismo e saímos como sujeitos políticos respeitados, capazes de dialogar e produzir mudanças”. Se alguém fala para você “vamos a teorizar negritude” o que vem na sua cabeça? (esta pergunta me pediu para fazer um menino da minha universidade que esta organizando um conferência com esse tema) Cidinha: Penso em possíveis teorizações sobre o ser negro e penso no movimento de negritude, protagonizado por estudantes africanos e caribenhos francófonos, na França dos anos 50. O que esta trabalhando agora Cidinha? Cidinha: Estou divulgando o Tambor pelo Brasil, editando meu blogue, www.cidinhadasilva.blogspot.com , e trabalhando em um livro juvenil em parceria com a artista plástica carioca Iléa Ferraz. Errei: Marissel é portoriquenha, não estadunidense. Correção importante feita por solicitação da entrevistadora.

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