Entrevista da Cidinha

(Entrevista concedida à estudante de Letras, Ana Cléa Campos, da UNEB-Alagoinhas, BA) Cidinha, fale um pouco da sua obra “Cada tridente em seu lugar e outras crônicas”, como se deu a construção e a seleção de crônicas para a mesma! Cidinha:Durante o segundo semestre de 2005 escrevi regularmente para um boletim eletrônico. Eu gostava muito do que escrevia e os(as) leitores(as) também. No final daquele ano, achei que tinha um volume de trabalho desafiador para publicar um livro. Durante os meses de janeiro a março de 2006, enxuguei os textos já prontos e escrevi novos. Depois, organizei-os como livro, mas só tive certeza da publicação, quando apresentei o conjunto de histórias curtas ao amigo e escritor Marcelino Freire, que, entre uma viagem e outra e suas dezenas de afazeres literários, teve a generosidade de lê-las e fez o seguinte comentário: “pode publicar, você tem texto”. Marcelino sugeriu que eu cortasse várias crônicas, por diferentes motivos: ora não estavam suficientemente trabalhadas, ora eram datadas, noutros momentos eram ruins mesmo. Acatei a todas as sugestões de cortes e também uma certa edição nos textos que permaneceram. Mudei também o título, por sugestão do Marcelino, posso dizer mesmo, que ele batizou o livro. Editar o Tridente de maneira independente, sem uma editora à frente foi muito importante, pois tive contato com cada etapa da produção de um livro, começando pela escritura propriamente, passando pelos diversos tipos e momentos de revisão, por todo o processo gráfico e também pela parte de registro da obra. Isso tudo me possibilitou o domínio do processo de construção do objeto-livro, com todas as escolhas e resultados decorrentes. Muito importante também foi aprender quanto custa produzir um objeto-livro. Nestes tempos em que as editoras oferecem “parceria” aos autores e autoras, o que significa dizer, propõem que estes(as) arquem com “parte” dos custos de edição, é fundamental saber o custo final de um livro. Logo de início pude perceber que a maioria das editoras que adota este tipo de procedimento, na verdade, tira todos os custos do trabalho gráfico da tal “parte” custeada pelo(a) escritor(a), que, por desconhecimento dos números, não sabe o quanto está pagando. O Tridente é dividido em três partes, cada uma com dez textos e isto também foi sugestão do Marcelino para ratificarmos o título do livro. As crônicas são transversalizadas por quatro temas centrais: relações raciais e de gênero, religiosidade de matriz africana e sexualidade. No meu segundo livro “Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor!”, os temas predominantes são gênero e sexualidade e, nos dois casos, os temas regeram a organização das obras. Nos próximos livros de histórias curtas quero trabalhar de maneira diferente, quero escrever apenas, soltar a pena e criar, os temas, serão todos aqueles que me forem caros, entretanto, não pretendo que orientem minha escritura. Em alguns estabelecimentos de ensino e por alguns leitores sua obra é considerada como literatura marginal, me fale o que você pensa sobre essa classificação. Você concorda? Cidinha: O cânone literário, os(as) analistas e leitores(as) têm o direito de classificar minha obra como quiserem, de acordo com os parâmetros orientadores do seu campo de análise, nesse sentido, podem classificar minha produção como literatura marginal, mas isto não ecoa em mim. Eu não sou, não me considero, nem me intitulo, uma escritora marginal, tampouco escrevo literatura marginal. Explico: há pelo menos dois sentidos correntes de literatura marginal, um, estabelecido pelo cânone, que considera marginal toda a literatura que os estudos culturais tão bem têm retratado, ou seja, aquela produzida por mulheres, gays, lésbicas, indígenas, moradores de periferias, negros, outros grupos raciais e étnicos, etc, etc, etc... Este repertório canônico não me traduz e produz uma limitação a um certo lugar, um emparedamento na margem, numa livre interpretação de Cruz e Souza. Eu aspiro os rizomas de Delleuze-Guatarri, não caibo na margem, ela é muito pequena pra mim. Outro sentido significativo de literatura marginal tem sido construído pelos guerreiros e guerreiras da literatura periférica brasileira, que escrevem a partir das periferias das grandes cidades do país e afirmam, num exercício amazônico de ressignificação poética, que "escrevem literatura marginal porque estão às margens da cidade”. A meu juízo, a literatura marginal ou periférica inaugurada no Brasil por “Cidade de Deus”, de Paulo Lins e “Capão pecado”, do Ferréz, mais especificamente por este e pelas pessoas às quais inspirou, fala de um lugar geo-político-afetivo. É um jeito de morar, viver e produzir literatura na favela e nas periferias, para a favela e com a favela, usando as armas do amor e a flecha-caneta na guerra pela palavra. O lugar geográfico periferia é de suma importância para que os integrantes da literatura marginal ou periférica emitam sua voz. Ali tudo começa, a partir dali tudo se desenvolve. Eu não moro na periferia, não tenho meu coração plantado nesse lugar político, transito por lá, vou buscar perfume e deixar minhas flores, mas emito minha voz de outro lugar, do lugar de uma escritora negra, atenta a todos os lugares (reais e simbólicos) pelos quais as pessoas negras transitam, periféricos ou não. Minha literatura pretende alcançar todo mundo, não quer falar (apenas) “de dentro pra dentro”, tampouco aceita o emparedamento da margem para se auto-definir. Eu me identifico com a literatura periférica, respeito e admiro, mas não a integro. Acompanho, sou solidária e bem recebida, os escritores e escritoras marginais ou periféricos demonstram respeito por meu trabalho e o acolhem, estamos juntos, mas temos diferentes perspectivas e jeitos de circular pelo mundo literário. Fale um pouco sobre você, quem é Cidinha da Silva? Cidinha:Sou mineira, de Belo Horizonte, a primeira bisneta, neta e filha do meu tronco materno, o que definiu quase tudo na minha vida. Já li muita poesia e hoje releio um pouco do que li antes e leio o que ainda não li dos autores que gosto. Tenho pouca paciência com o pessoal que acha que escrever poemas é fácil e por isso se dedica ao gênero. Acho dificílimo, acho que poesia exige apuro não só de linguagem, mas sentidos finos para perceber e apresentar o mundo, mais do que o tal sentimento aos borbotões que inunda resmas de papel e telas por aí. Estou me constituindo como prosadora e cada vez mais, acho que a poesia é fundamental em tudo. A segunda edição de seu livro foi publicada por qual motivo? E as mudanças estabelecidas, quais foram as razões? Cidinha:Até a publicação da primeira edição do Tridente, eu caracterizava tudo que estava ali escrito como crônica, talvez por não ter uma definição precisa do que era um conto, ou provavelmente por não ter a fluidez necessária para compreendê-lo em sua promiscuidade fronteiriça. À medida que as pessoas foram lendo e avaliando o trabalho, chegaram vários comentários, principalmente vindos de escritores(as) e gente ligada à literatura, mencionando meus contos. A surpresa do princípio foi se transformando em incômodo, pois, como é que eu havia escrito contos e os chamava de crônica? Embora Mário de Andrade tenha dito que o texto é aquilo que o autor quiser que ele seja - é o autor quem define o gênero da própria produção -, eu me sentia muito desconfortável. Fato é que eu não estava mais segura de que tudo aquilo era “só” crônica mesmo. Concomitantemente, o livro tinha uma saída muito boa, vendia bem e ainda outros fatores propugnaram a 2a edição. Um deles foi a seleção do Tridente para compor o kit-étnico-racial de livros da Secretaria de Educação da Prefeitura de Belo Horizonte, 2007. Isso esgotaria os exemplares restantes e ainda havia muitos lugares aguardando o lançamento do livro. A editora Maria Mazarello, da Mazza Edições, havia me convidado meses antes para escrever para uma série de literatura infantil da editora. Redimensionei o convite e propus a ela a feitura da segunda edição revisada do Tridente, ela aceitou e nesta nova edição, resolvi todas as minhas insatisfações com a primeira. A começar pelo título, do qual saiu a expressão “e outras crônicas”, porque àquela altura, eu mesma estava convencida de que ali havia também contos. Cortei oito textos que já haviam cumprido seu papel e que, juntamente com o acréscimo de três outros, deixaram o livro mais redondo. Acrescentei uma capa belíssima, desenhada pela amiga e artista plástica de Brasília, Lia Maria, e um prefácio crítico do Mestre e amigo, Edimilson de Almeida Pereira. Além disso, produzi um encarte com sugestões de atividades pedagógicas para cada texto, visando aprofundar o diálogo com o significativo número de educadores(as) que já trabalhava com a obra. Cumpre-me dizer que a compra do Tridente pela Prefeitura de Belo Horizonte não se efetivou, infelizmente, porque a distribuidora responsável pela venda perdeu o dia do pregão. A despeito disso, a primeira edição esgotou-se rapidamente e após dez meses de lançamento fizemos a segunda edição. O que você me diz sobre o incentivo aos novos escritores brasileiros? Cidinha: Trata-se de tema tão complexo, escolherei apenas três aspectos para tratar superficialmente aqui, quer sejam: os concursos de literatura, as editoras periféricas independentes e os blogues literários, enquanto incentivadores da produção e participação de um certo grupo de escritores(as) que a mim interessa mais de perto, os(as) escritores(as) negros(as). Quando observamos o número de pessoas e trabalhos inscritos em concursos literários, nos damos conta do quanto se escreve no Brasil, bem como da quantidade amazônica de autores(as) em busca de publicação/divulgação/reconhecimento do próprio trabalho literário. E trata-se de valorização buscada em um meio muito criticado, os concursos, aos quais se acusa, por exemplo, de serem viciados. Particularmente, costumo mensurar a qualidade do concurso pelo júri, que diz muito sobre o tipo de escritura que terá vez. Críticos mais ácidos e mais acadêmicos chegam a dizer que os concursos premiam a mediocridade. Se considerarmos este ponto de vista, nem valeria a pena participar deles. A participação de escritores(as) negros(as) sob qualquer das perspectivas citadas é muito pequena e afirmo isto a partir de conversas informais e da observação de alguns concursos, por exemplo, o Portugal-Telecon 2008, do qual integrei o corpo de jurados da primeira etapa seletiva. É um concurso bem interessante, no qual todas as fases são públicas e podem ser acompanhadas pela Internet, dos livros inscritos aos nomes do júri. A regra básica é que os livros concorrentes tenham sido publicados em 1a edição no ano anterior, em língua portuguesa e também tenham o registro internacional de publicação, o ISBN. No caso brasileiro este registro é feito pela Biblioteca Nacional. Tenho diversos amigos e conhecidos negros, autores e autoras de livros de literatura publicados em 2007, em tese, aptos a se inscrever, mas não o fizeram. Como justificativa, alguns(as) acusam a inexistência de espaço nesses concursos para a “nossa literatura”, outros esperam que as editoras se movam e os inscreva - acreditam que autor deva escrever, apenas, outras tarefas seriam menores e caberiam à editora -, outros desprezam os concursos, outros, integrantes das editoras independentes, por exemplo, mesmo que quisessem, não poderiam se inscrever, porque, por sua vez, desprezam o “tal ISBN” e não fazem o registro. Assim, seguimos invisibilizados(as) em mais esse espaço literário, por motivos que também são nossos e, arrisco dizer que os concursos literários não têm atuado como incentivadores da maioria dos novos escritores e escritoras negros. As editoras periféricas independentes, a seu turno, têm se constituído em espaços importantes de uma produção literária inovadora, protagonizada por jovens autoras e autores negros, ainda que o pertencimento racial não esteja no centro do discurso literário e político da maior parte desse grupo. Entretanto, destacam-se pelo menos duas características singulares nestes novos escritores e escritoras, quer sejam: uma salutar diversificação de gêneros publicados que passa pelas histórias curtas, poesia, dramaturgia e também romance, aliado à publicação de obras individuais, rompendo com uma prática bastante comum das escritoras e escritores negros dos anos 80 e 90, de publicarem em coletâneas. Opta-se por este tipo de arranjo coletivo devido à falta de oportunidade de publicação de obras individuais, por uma estratégia de diminuição de custos e, ou, por exercício do senso de oportunidade, pois, várias dessas coletâneas foram organizadas e editadas por pesquisadores brasilianistas fora do Brasil. Fato é que esse grupo de novas escritoras e escritores negros, regidos pela batuta da literatura periférica, tem a ousadia de publicar livros individuais, feitos na periferia e com o objetivo maior de formar público na periferia, tanto para a própria literatura, quanto para a literatura em geral. Por fim, um breve comentário sobre a constituição de blogues literários com fator de incentivo e, ou, consolidação do trabalho literário de novas escritoras e escritores negros. Observo raríssimos blogues desses(as) autores(as) na blogosfera e os motivos podem variar da falta de domínio das ferramentas tecnológicas a um juízo de valor negativo da ferramenta, tendo no entremeio amplas possibilidades explicativas, às quais não saberia abordar agora. Particularmente, acredito e invisto no blogue com um instrumento de divulgação do meu trabalho literário, bem como de uma perspectiva de ARTIVISMO que me é cara, também de ampliação e consolidação de um público específico via Web. Nos meus estudos faço uma comparação da sua obra com a obra “O mulato” de Aluízio de Azevedo, você conhece o romance? O que você me diz dessa obra? E você discorda ou concorda do estilo e linha de expressão sobre o preconceito racial e social de um modo geral expresso e debatido por Aluísio de Azevedo? Cidinha: Eu conhecia o autor e o livro, mas não o havia lido, li agora, para responder a esta questão. Trata-se de um romance datado, não é? Pareceu-me que o autor é mais incisivo ao fotografar outros aspectos das relações sociais hierárquicas, abusivas e autoritárias, de uma sociedade escravocrata em franca deterioração, do que no detalhamento das relações raciais nesta sociedade. Os abusos perpetrados pela Igreja Católica e pelos poderosos, os vícios de uma província colonizada e atrasada, são mais bem explorados do que o dilema racial, por exemplo. Raimundo sempre fora tratado como negro, desde os apelidos recebidos em Lisbôa, mas ainda assim, sequer intuía (estando no seio de sociedades escravocratas, a lisboeta e depois a carioca e a ludovicense) sua ascendência negra. É algo surreal. Um descendente de negro naquele contexto podia negar e camuflar de todas as formas a própria ascendência africana, mas não haveria como não percebê-la, face a tal tez fortemente morena e os cabelos crespos, descritos pelo próprio autor do realismo-naturalismo, para não falar nos aspectos subjetivos . A obra tem os méritos de ter sido escrita por um jovem de vinte e poucos anos, crítico social perspicaz; por ter inaugurado um campo de escritura e por ter se insurgido contra uma mentalidade colonizada, ainda que idealizasse a européia, ao sugerir que lá, Raimundo se fez um homem feliz e respeitado. Na leitura da sua obra foi possível observar seu respeito aos mais experientes e seu conhecimento de meandro sobre respeito religioso, e a sua preocupação com a cultura e hábitos da sociedade de um modo geral. Fale sobre sua religião e o seu respeito com a mesma, não esquecendo de se posicionar sobre a diversidade religiosa do Brasil e a importância de saber conviver com essa variedade! Cidinha: Prezo muito na minha obra, o espaço estruturante dado aos valores de matriz africana, que podem ser notados explicitamente nos textos ou em certos detalhes, postos ali para serem percebidos por quem os olha com olhos de ver. No cenário da literatura contemporânea, há vários autores e autoras que têm a memória como principal referência de escritura, não é o meu caso. Até o momento, nos dois livros que publiquei, vinha observando muito o cotidiano e deste exercício surgiu a maioria dos meus textos. Não sei se continuarei assim, principalmente se vier a investir na criação de textos mais longos, a ver nas próximas publicações. Quanto à religiosidade, as religiões de matriz africana pautam-se pela pluralidade, pelo respeito a outras manifestações religiosas e, minimamente, exigem o mesmo respeito que dispensam às outras.

Comentários

Glória Azevedo disse…
Oi Cidinha, muito pertinentes suas colocações sobre a literatura marginal e nov@s autor@s.A questão da margem x o cânone representa uma luta contra o poder político e a indústria do livro. Lutar contra esse sistema requer coragem e qualidade literária também.
Acho que o espaço cibernético democratizou mais o acesso à "literatura de temáticas desvalorizadas".
um abraço e um cheiro

Postagens mais visitadas