A volta dos que não foram
Por Cidinha da Silva
Triste e constrangedor foi o breve discurso da desembargadora
Luislinda Valois em cerimônia administrativa do desgoverno Temer, na qual alçou
o usurpador ao posto de “padrinho das mulheres negras”. Se falasse apenas por
si seria lamentável, mas ela o fez em
nome das mulheres negras mães e avós. Isso foi inaceitável e mereceu respostas contundentes.
Não conheço a desembargadora pessoalmente, nunca estivemos
cara a cara. Conversamos uma vez, por e-mail, quando a procurei para apresentar
a plataforma de minha candidata à Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado da
Bahia e para pedir seu apoio. A resposta foi solícita. Declarou que conhecia
Vilma Reis e a apoiava desde o primeiro momento. Escrevi um pequeno depoimento
a partir da conversa e submeti-o a ela para aprovação. Estava tudo certo, menos
seu título honorífico, eu a chamei de juíza. Luislinda me corrigiu de maneira
muito gentil e serena, era desembargadora. Desculpei-me, ela aceitou as
desculpas e publicizamos sua adesão à campanha.
Conto isso para dizer que não tenho qualquer senão à Senhora
Luislinda por ser do PSDB. Quando a procurei para compor uma lista de suporte
supra-partidário à candidata à Ouvidoria da DPE-BA foi por sabê-la mulher negra
de luta, acima de qualquer sigla. Pela consciência de que pertencemos à mesma
comunidade de destino e de que era importante seu aceno àquela mulher negra
candidata.
Penso que do ponto de vista pessoal, a desembargadora (não a
chamarei de ministra porque não reconheço o governo ilegítimo) pode afirmar
qualquer coisa, pode ser grata por qualquer coisa, são questões íntimas. Portanto,
sem qualquer objeção, pode afirmar-se identitariamente como “preta, pobre, da
periferia, candomblecista, divorciada e sem padrinho (antigamente), mas agora
apadrinhada por Temer”. A condição de afilhada do ilegítimo é uma opção
legítima, mas questionável.
Assumir-se publicamente apadrinhada pelo usurpador da
Presidência da República, orgulhando-se disso, é algo retrógrado, porém,
aceitável, compreensível dado o perfil político da desembargadora e certa
característica geracional, como bem discutiu o jornalista Marcos Romão em
artigo recente. Assumo a responsabilidade sobre a grave afirmação, pois, muitas
mulheres negras da geração da senhora Luislinda se fizeram na vida sem
padrinhos e, se tivessem um, não gostariam que fosse Temer.
Talvez, por trás da louvada “coragem e galhardia” de Temer
(PMDB) ao convidá-la para ocupar um ministério do governo golpista, levando-a
aos prantos, exista uma crítica aos governantes anteriores que não a
reconheceram, não a convidaram para postos à sua altura; gente de sua própria
sigla partidária (PSDB) no estado natal (BA) e no governo federal. Foi Temer,
seu padrinho, quem a convidou. E só mesmo uma mulher muito agradecida poderia detectar
um “coração grandioso” naquele peito decorativo.
De toda sorte, não podemos culpá-la. Do ponto de vista
pessoal a desembargadora pode afirmar qualquer coisa, em que pese entendermos o
funcionamento do racismo que conduz muitas pessoas negras a aceitarem a subserviência
como estratégia de ascensão social e de “reconhecimento” de trajetórias.
Contudo, ela não pode entregar a Temer o título de padrinho das mulheres negras
em nome delas. Em nosso nome. Contra isso se insurgiram organizações
representativas das mulheres negras como a Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras -
AMNB e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas – CONAQ, entre outras. Também
levantaram a voz mulheres negras pertencentes a coletivos e outras sem vínculo
institucional. Todas enojadas com o servilismo da declaração.
Se migrarmos do campo da política para a arte, talvez fique
mais fácil entender porque o apadrinhamento nos causa tanta repulsa. No
episódio de reação e resistência ativa ao morfético seriado O sexo e as nega,
de Miguel Falabella, da rede patrocinadora e mantenedora do golpe de 2016, três
artistas negros me escreveram na intenção de me demover da decodificação do
racismo explícito do programa de entretenimento. Em linhas gerais, os colegas argumentavam que
eu não sabia como a Globo funcionava por dentro e era necessário jogar o jogo com
as cartas da emissora. Falabella era um aliado (um padrinho, se quiserem)
incompreendido, e, se o deixássemos trabalhar, ele abriria portas nunca antes abertas
para os artistas negros na TV.
Inexistia ingenuidade na posição dos colegas. Tratava-se de
posicionamento político, discutido, ponderado, público como o da desembargadora
e, como tal, criticável. Não esperem condescendência por tratar-se de uma mãe a
avó septuagenária. Tratamos de política, agimos politicamente.
Para garantir seus interesses, defensores de Falabella
criaram um grupo virtual no afã de discutir ações de reforço a ele e para
desfazer o que acreditavam serem equívocos do Movimento Negro e de outras
pessoas, intelectuais, artistas, etc, que atacavam o seriado (ou se defendiam
dele, como penso). Pois, de maneira desavisada ou mal intencionada, já que eu
pertencia ao outro campo e isso era público, alguém me inscreveu nesse grupo e só
por isso soube de sua existência, pois era fechado. Considero possível a má fé do
ato, pois havia pressões de todos os lados pela solidariedade pública ao
padrinho – sabemos que dentro da emissora, atrizes e atores negros importantes
eram diariamente emparedados a se posicionar em favor do autor do seriado. Pobre
da raia miúda que poderia se beneficiar de papeis criados por ele. E talvez
alguém que tivesse querido, mas não tenha podido resistir à pressão tenha se
vingado ao tentar me infiltrar no grupo.
Pois bem, como a política tem lados e deve ter ética,
imediatamente comuniquei ao grupo que, por engano, alguém havia me adicionado e,
como era de conhecimento público, eu pertencia a outro campo de artistas,
contrário à execução do seriado por considerá-lo racista, e por isso achava que
deveriam me excluir do grupo, sob pena de minha permanência permitir que eu
tivesse acesso a informações privilegiadas que não me diziam respeito. Devem
ter concordado comigo, pois me excluíram. Por que fiz isso? Por que não quis
espioná-los? Porque não pratico a espionagem como tática política. Porque eles
eram meus iguais e embora estivéssemos em campos opostos, não éramos inimigos.
O mesmo acontece com a leitura crítica do discurso da
desembargadora Luislinda. Somos iguais, estamos em campos opostos e ela será
criticada com a dureza necessária. É certo que ela pode pavimentar o caminho
discursivo mais confortável de agrado ao chefe. É um direito. Pode ser uma
tática do jogo. Mas não pode dizer que as mulheres negras lhe concederam mandato
para transformar Temer em padrinho. Vamos ao debate. Construiremos nossos
argumentos daqui e ela que sustente os dela de lá.
Temer não é e nunca poderia ser padrinho das marisqueiras
atingidas pelo corte do Defeso, conquista social que lhes garantia rendimento
nos períodos em que é proibida a pesca e o recolhimento de crustáceos, com o
objetivo de assegurar-lhes condições saudáveis de reprodução. Tampouco das
mulheres negras das ocupações nos centros urbanos, antes atendidas pelo
programa Minha Casa Minha Vida na modalidade Entidades que permitia que
famílias organizadas de forma associativa (cooperativas e associações, por
exemplo), produzissem suas unidades habitacionais. Ainda, não é e nuca será
padrinho das quilombolas, cuja demarcação e titularização de terras foi
travada; das usuárias das extintas farmácias populares que ofereciam descontos
de 40% na aquisição de medicamentos; de todas as gerações de mulheres negras
vitimadas pelo congelamento dos recursos destinados à saúde e educação por vinte
anos.
Temer não é e nunca poderia ser padrinho das mulheres negras
prejudicadas em sua primeira semana de desgoverno quando cortou milhares de
bolsas de manutenção de estudantes cotistas por todo o país; das negras
incluídas entre os 93 mil estudantes de graduação e pós-graduação que tiveram
estudos interrompidos pelo corte abrupto do programa Ciência sem Fronteiras;
das outras milhares atendidas pelo extinto Programa Nacional de Combate ao
Analfabetismo; das que foram atingidas pela redução dos repasses do FIES e do
Prouni; das que não poderão se inscrever no ENEN dada a majoração exorbitante
do valor da taxa de inscrição numa economia devastada em que as pessoas passam
a economizar centavos; daquelas que ainda não sabem como serão tratadas
conquistas como a Lei 10.639/2003 na Base Nacional Comum do Ensino Médio.
Eu me pergunto que “coração grandioso e cheio de carinho” é
esse do usurpador? Mas, numa coisa concordo com a desembargadora, a caneta de
Temer deve ter sim, prazer imenso em assinar todos esses desmandos.
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