CANÇÕES DE AMOR E DENGO: UMA LEITURA

Por Luciana Moreno

A ideia inicial era tecer uma análise sobre o livro de poemas da Cidinha, mas tragada por sua leitura considero que vale mais narrar a minha experiência literária ao me deleitar com as Canções de Amor e Dengo. Como ao longo do processo de ler o livro, as canções do meu repertório afetivo me tomaram, começo lembrando um verso de Caetano: “Os livros são objetos transcendentes, mas podemos amá-los do amor táctil que votamos aos maços de cigarro”, porque é assim que ingresso em minha incursão nessa experiência de leitura. Antes de trazer a chave para entrar nos poemas, me encantou o formato do livro. Aparentemente é um livro de bolso. Essa característica, entretanto não evoca uma decisão mercadológica, capitalista. É também uma via para baratear custos e popularizar o texto (o que considero maravilhoso). Mas é sobretudo um meio de consolidar a ação revolucionária da Mi parió e da própria Cidinha de “editar ‘livros semiartesanais, bonitos de encher os olhos e a alma, mas sem esvaziar os bolsos”. Livros desse tamanho são delicadezas tratadas como relíquias, preciosidades que exigem cuidado. É preciso entrar neles com os “pés de flor” que encontraremos nos versos lá dentro do livro.
Ainda sobre o prazer de tocar no livro, cheirar suas páginas, alisar suas dobras, nós, leitores, somos presenteados com um fino e belo pedaço de tecido que se roça em nossas mão durante a leitura. O verde, o marrom, o branco, um leve rosa que não aparecerão nas páginas ficam grudados no corpo. E o dourado riscado no pano arremata a beleza da qual ando carente. Confesso! Durante as muitas leituras que fiz do livro, numa delas, o tecido caiu. Fiquei órfã. Senti-me obrigada a colar novamente o tecido. Eu acho que é porque depois que a beleza, a delicadeza, o singelo se grudam na gente é mesmo insólito continuar sem isso. Refiro-me à leitura. Mentira refiro-me também à leitura, mas sobretudo à vida, ao amor.
Então, abri o livro. Pássaros e flores me assaltaram. Era o amor mesmo que me elevava. Pronto, eu era a leitora, a amante, viveria ali entre as páginas. Mas Cidinha me trai logo na entrada e nas primeiras páginas joga água na leitora que eu quero ser. Que é justamente aquela leitora desprendida da professora, da pesquisadora em teoria da literatura e me amarra de volta a uma das minhas personas. Diz a mim em seu “Manifesto”, aos críticos, aos pesquisadores, munidos da máquina de dissecar textos literários, de encaixotar escritoras que façam o que quiserem, mas não a obriguem a qualquer coisa. Ela sabe que nós a pesquisaremos, ela sabe que nós escreveremos sobre ela, todavia ela seguirá seu caminho com as roupas e as caixas que lhes convier. Se lhes convier. Até porque, a ancestralidade, desde sempre já a aponta para o fogo, o trovão, a justiça.
Vou encontrando o olhar lírico da cronista. Ali estão o amor e o dengo, mas sem perder de vista a crítica social, o cotidiano como fonte primária, a vida presente, os homens e mulheres do presente, o tempo presente, como declara o poeta gauche, seu conterrâneo. Na linguagem tem “é coisa, viu?” Em bom baianês, a escritora da multiterritorialidade, cidadã do mundo, que nasceu em Minas, morou em São Paulo, em Brasília, que viajou por diversos lugares e agora vive na Bahia coloca as marcas do nosso falar nos textos. Nos jogos com a palavra derruba a ideia de que senzala pode ser sinônimo de quilombo, brinca com a sonoridade do vocábulo para fazer o que de melhor sabe fazer: nos tirar da superfície, nos arrancar das obviedades da fala corriqueira que se cola na gente e nos acostuma a não pensar. Ora potencializa a ordem do discurso, ora subverte-a. Até porque aqui “ninguém se acha. A gente é”, como um dos seus versos nos aponta.
As páginas se seguem sendo encharcadas de águas que fluem, afogam, secam e refluem. Nesse sentido mesmo. Há enchentes nas primeiras páginas, seguidas de secura e dor funda no depois, mas que, para nossa sorte, retornam cheias, abundantes, alvissareiras.
As poetas são maravilhas nas vidas de seus leitores porque nos mostram que as loucuras são humanas. Me conforta ler o “Vermelhor”, porque eu também quando não encontro respostas no universo da racionalidade, confio no “ônibus vermelho” que vai passar, ou digo, se ele me ama o terceiro carro a passar nessa via será preto e estará com o vidro aberto. E eu sigo confiando que minha brincadeira é resposta certeira, nem de longe é maluquice.
Essas águas de dengo e amor e muita, mas muita dor também são ginga, corpo, movimento e aqui na porta do poema o verbo decantar pode tanto ser fazer loas, quanto se livrar de impurezas ou se separar de algo ou alguém. Decantar na “Química sentimental” é a faca amolada da solidão, são os dias de espera. Então, ainda que haja amor quem caminha por essas páginas poéticas vai ser convidada a também fechar a cara. E vai ouvir o refrão de Nelson Cavaquinho: “tire seu sorriso do caminho”, porque há horas em que só nos resta fazer a dor imperar.
Mas no logo depois virá com força a Canção da chegada, aquela dos dias de luz, em como canta Gal a composição de Gil: “quando a gente está contente tanto faz o quente, tanto faz o frio tanto faz”. Tudo abre comportas.
E se conselho fosse bom eu diria que a minha experiência com os dengos e o amor desses poemas me disse que ainda que não saibamos se o que mais cala é o que um dia desejamos e nunca tivemos ou o que desejamos e tivemos a sorte de ter no agora... O amor é um imperativo! Eu diria pela voz desses poemas que amor é entrega, com a quase certeza do abismo, da ferida, das ranhuras e ainda que haja o desamor, o amor em si mesmo é a chave para a renovação.
Assim, fecho as comportas do livro com as águas que encharcaram tudo. Com leveza, sim com força também. Indomáveis. Intransponíveis, porque a despeito de nossas vontades, as águas retornam exuberantes. E chega o tempo da “oguniação” cessar nos dizeres da poeta e se inaugura o tempo da “oxumniação”. Das águas. Da esperança. Que venham. Porque o que nós leitores mais desejamos é que ainda que haja fúria, desesperança e medo, em algum tempo digamos: “Enfim chegaste, minha rainha, plena estou para te receber”.

A experiência de ler os poemas inaugurais da Cidinha teceram outras manhãs. Teceram as minhas manhãs e ainda que por alguns minutos fizeram da professora, a dengosa amante. Agradeço.

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