Violência entre mulheres!
Por Cidinha da Silva
Eis que o improvável se torna público e apequenada não consigo intitular o texto como: “violência entre mulheres
negras”. Mas é disso que trata a carta pública de F., mulher negra, covardemente agredida por R., outra mulher
negra, pelo menos duas vezes maior do que F.
Quando soube da história, contada por uma amiga do casal, não dimensionava os detalhes trazidos pela carta, que qualificam e tornam mais cruel a violência. Em síntese, por motivos indefensáveis, como qualquer motivo para devassar a privacidade alheia o é, R. invade o telefone celular de F., vasculha, encontra informações que lhe interessava encontrar e, em nome disso, passa às agressões verbais e físicas. Primeiro bate o telefone reiteradas vezes na cabeça de F., depois tenta estrangulá-la. F. foge e é perseguida dentro de sua própria casa. É ameaçada na frente dos netos, cujas idades variam entre 1 e 6 anos. Os netos também sofrem ameaças. Depois de fugir para a rua, quando as demais pessoas adultas da casa se inteiram do que se passava, F. é, finalmente, defendida por elas e, aliado a isso, pede socorro, por telefone, a outras mulheres. É socorrida e, ao que parece, a rede protetora acionada tomou a frente da situação para resolvê-la.
Passei a noite incomodada com o que imagino serem os sentimentos de uma mulher de 64 anos agredida pela ex-companheira, ainda que esta deva estar doente e necessite de tratamento, e confesso, que escrevo agora, porque preciso estar à altura da coragem dessa mulher digna que torna público o que vivenciou.
A violência física avilta tanto que tem efeito paralizante, nem sempre as pessoas violentadas conseguem se defender e muitas vezes, morrem.
Lembro-me da primeira vez que me deparei com a violência doméstica, tinha uns 13, 14 anos e um homem, casado com uma familiar distante, a agredia. Todo mundo comentava, mas ninguém tomava uma atitude para ampará-la. Eram tempos da briga entre marido e mulher, na qual não se metia a colher. Eu, sob protestos de alguns parentes que a julgavam culpada por apanhar, enfrentava o cara com o silêncio. Nas festas familiares não o cumprimentava, não conversava com ele, não ficava em ambientes nos quais ele estivesse. Um dia ele fez um gesto obsceno para mim. Eu me aproximei dele, enojada, e disse; “Se eu contar para o meu pai, você é um homem morto.” E ele riu um riso mais sinistro do que o gesto, e daquele momento em diante, temi pela filha dele, a quem ele deve, sim, ter abusado em diferentes momentos da infância, enquanto viveu. Por sorte, morreu cedo, o desgraçado.
Depois, quando tinha uns 19, 20 anos, ouvi dizer que meu melhor amigo havia espancado a companheira, que não era minha amiga. Quando a vi, por acaso, pedi desculpas pelo constrangimento da pergunta, mas indaguei se meu amigo a havia espancado e ela detalhou tudo. Nossa amizade começou ali e é forte até hoje. Telefonei para ele e pedi para nos encontrarmos. Obviamente, eu sabia que era tudo verdade, mas, por algum motivo que até hoje não sei explicar, eu precisava ouvir dele.
Chegamos ao Pop pastel da rua Rio de Janeiro e ele já sabia que não podia mais me abraçar, e me beijou a face, sem que eu retribuísse. Sentamos em silêncio e ele começou: “Eu te agradeço muito, porque todo mundo virou a cara pra mim. Ninguém é meu amigo de verdade. Ninguém quis ouvir a minha versão da história.” Eu o interrompi e disse: “Eu também não quero te ouvir, só quero resposta pra uma pergunta, isso eu quero ouvir da sua boca, você bateu nela?” “Há várias formas de violência”, ele respondeu. Eu insisti: “Não quero saber, quero saber se você bateu nela?” Ele não respondia diretamente à pergunta, insistia em falar dos comportamentos da companheira que supostamente o agrediam, todos relacionados à determinação e disciplina de uma mulher que foi trabalhadora doméstica e hoje é professora universitária, concursada em uma das melhores universidades públicas federais do país. Por fim, ele me perguntou: “O que você acha de uma mulher negra que chama a polícia para um homem negro, sabendo como a polícia nos trata, sabendo que o pai dos filhos dela iria para o pau de arara?” “Acho que ela está desesperada e se agarra a qualquer possibilidade para proteger a si e aos filhos.” “Você me conhece, eu nunca faria mal aos meus filhos.” “Não, eu não te conheço mais.” Ali acabou nossa amizade e, até hoje, passados 25 anos, nos cumprimentamos burocraticamente quando eventualmente nos encontramos. Soube, uns 15 anos depois do ocorrido, que ele havia agredido outra mulher negra, desta feita, uma ex-companheira que o sustentava. Quando jovem, ele ainda trabalhava.
Eis que agora, uma mulher negra agride a companheira e todas as nossas teorias explicativas da violência machista caem por terra (ou não). A violência intra-gênero é o meio do buraco, o mais fundo dele. E eu não tenho explicação! Tenho histórias para contar, pois F. não é caso isolado.
Há muitos anos acompanhei o caso de uma jovem integrante de organização de mulheres negras que afrontava algumas das mais-velhas com seu brilho, competência, vivacidade e também com sua arrogância. Tramou-se um plano para derrubá-la, uma acusação bem urdida de desvio de dinheiro, com o requinte de provas forjadas. Deu certo, parcialmente, mas a megera ardilosa, responsável pelo plano, não contava com a ação da companheira da jovem, que procurou a Manda-chuva e disse: “Manda-chuva, ela suporta tudo, mas se você desconfiar dela, ela morre!” E a magia do feitiço, quando revelada, começa a se desfazer e a Manda-chuva lembrou-se de quem era a jovem e de quem era a outra, e o mal foi desfeito – com demissões, na instituição parceira, como deveria ter acontecido também na instituição negra. Ali, ao contrário, todo mundo relevou o que a bandida fez, com mal-disfarçado regozijo. Fazia parte do jogo da política e ela era “daquele jeito mesmo”, tinha uma história de vida que justificava seu comportamento desonesto, desleal e criminoso, em última instância.
Essa coisa intra-gênero, realmente pega. Eu confesso que me vi explicando a atitude da espancadora de F. a um interlocutor, pelo histórico de violências sofridas na vida, a despeito, obviamente, de não absolvê-la. Mas o caso é que com um homem violento não explico nada, corto-lhe a cabeça e pronto. É uma contradição pesada, admito.
Creio que são essas contradições que levaram F. a permanecer tanto tempo com R., que nos levam a compreender e desculpar as idiossincrasias, os excessos e a psicose de quem amamos. Certamente a psicologia tem explicações mais densas e consistentes. Vôo até onde alcanço. Tenho um casal de amigos heterossexuais que, para mim, são a mostra cabal disso. Ele, um homem negro com histórico de inúmeras violências sofridas. Ela, uma moça bem nascida e bem educada, diferente da maioria das moças negras de sua geração e principalmente do seu local de nascimento. Um dia alguém me conta que ele a espancou e meu mundo caiu, dessa feita eu não podia acreditar. Então a porta-voz da má notícia argumenta que a família da moça rompeu relações com ela, o pai teria dito: “Minha filha, a educação que eu te dei não admite que homem algum te encoste a mão, nem eu! Se você apanha de um homem e escolhe manter-se ao lado dele, você não é mais a filha que eu eduquei.” E parece que, por uma questão de dignidade, os avós acabam se privando da convivência com o único neto. Eu, do lado de cá, não sei mais se continuo amiga deles. Depois de saber disso, nunca mais conversamos.
Antes desse fato, eu havia tomado conhecimento de que o agressor (meu contemporâneo em idade e ativismo) protegera um jovem espancador, membro de um grupo orientado por ele. O mais-velho procurou a jovem negra espancada pelo rapaz e a convenceu a não denunciá-lo, haja vista que o rapaz era um guerreiro valoroso e a denúncia macularia sua carreira política promissora.
Estou em choque. Não tenho respostas. Só situações e mais situações para narrar.
O alento nosso é contar com a coragem de F., que, ao denunciar a agressão e tomar as medidas cabíveis de auto-proteção, deflagrou um debate que, pelo menos no plano interno das organizações de mulheres lésbicas, ocorrerá.
Não tenho respostas, mas penso que devamos investir na delicadeza das relações humanas, na sutileza da entrega do afeto, no respeito construído nas trocas cotidianas. Além de tratar as psicoses! Nada de aceitar tapa na cara e pedir bis, na hora da pegada mais forte. Nada de aceitar que a companheira nos tome da mão o telefone, para resolver pelo jeito estúpido dela, um problema que nossa sutileza está contornando. A violência começa em gestos aparentemente pequenos e se alastra como fogo em capim seco.
Eis que o improvável se torna público e apequenada não consigo intitular o texto como: “violência entre mulheres
negras”. Mas é disso que trata a carta pública de F., mulher negra, covardemente agredida por R., outra mulher
negra, pelo menos duas vezes maior do que F.
Quando soube da história, contada por uma amiga do casal, não dimensionava os detalhes trazidos pela carta, que qualificam e tornam mais cruel a violência. Em síntese, por motivos indefensáveis, como qualquer motivo para devassar a privacidade alheia o é, R. invade o telefone celular de F., vasculha, encontra informações que lhe interessava encontrar e, em nome disso, passa às agressões verbais e físicas. Primeiro bate o telefone reiteradas vezes na cabeça de F., depois tenta estrangulá-la. F. foge e é perseguida dentro de sua própria casa. É ameaçada na frente dos netos, cujas idades variam entre 1 e 6 anos. Os netos também sofrem ameaças. Depois de fugir para a rua, quando as demais pessoas adultas da casa se inteiram do que se passava, F. é, finalmente, defendida por elas e, aliado a isso, pede socorro, por telefone, a outras mulheres. É socorrida e, ao que parece, a rede protetora acionada tomou a frente da situação para resolvê-la.
Passei a noite incomodada com o que imagino serem os sentimentos de uma mulher de 64 anos agredida pela ex-companheira, ainda que esta deva estar doente e necessite de tratamento, e confesso, que escrevo agora, porque preciso estar à altura da coragem dessa mulher digna que torna público o que vivenciou.
A violência física avilta tanto que tem efeito paralizante, nem sempre as pessoas violentadas conseguem se defender e muitas vezes, morrem.
Lembro-me da primeira vez que me deparei com a violência doméstica, tinha uns 13, 14 anos e um homem, casado com uma familiar distante, a agredia. Todo mundo comentava, mas ninguém tomava uma atitude para ampará-la. Eram tempos da briga entre marido e mulher, na qual não se metia a colher. Eu, sob protestos de alguns parentes que a julgavam culpada por apanhar, enfrentava o cara com o silêncio. Nas festas familiares não o cumprimentava, não conversava com ele, não ficava em ambientes nos quais ele estivesse. Um dia ele fez um gesto obsceno para mim. Eu me aproximei dele, enojada, e disse; “Se eu contar para o meu pai, você é um homem morto.” E ele riu um riso mais sinistro do que o gesto, e daquele momento em diante, temi pela filha dele, a quem ele deve, sim, ter abusado em diferentes momentos da infância, enquanto viveu. Por sorte, morreu cedo, o desgraçado.
Depois, quando tinha uns 19, 20 anos, ouvi dizer que meu melhor amigo havia espancado a companheira, que não era minha amiga. Quando a vi, por acaso, pedi desculpas pelo constrangimento da pergunta, mas indaguei se meu amigo a havia espancado e ela detalhou tudo. Nossa amizade começou ali e é forte até hoje. Telefonei para ele e pedi para nos encontrarmos. Obviamente, eu sabia que era tudo verdade, mas, por algum motivo que até hoje não sei explicar, eu precisava ouvir dele.
Chegamos ao Pop pastel da rua Rio de Janeiro e ele já sabia que não podia mais me abraçar, e me beijou a face, sem que eu retribuísse. Sentamos em silêncio e ele começou: “Eu te agradeço muito, porque todo mundo virou a cara pra mim. Ninguém é meu amigo de verdade. Ninguém quis ouvir a minha versão da história.” Eu o interrompi e disse: “Eu também não quero te ouvir, só quero resposta pra uma pergunta, isso eu quero ouvir da sua boca, você bateu nela?” “Há várias formas de violência”, ele respondeu. Eu insisti: “Não quero saber, quero saber se você bateu nela?” Ele não respondia diretamente à pergunta, insistia em falar dos comportamentos da companheira que supostamente o agrediam, todos relacionados à determinação e disciplina de uma mulher que foi trabalhadora doméstica e hoje é professora universitária, concursada em uma das melhores universidades públicas federais do país. Por fim, ele me perguntou: “O que você acha de uma mulher negra que chama a polícia para um homem negro, sabendo como a polícia nos trata, sabendo que o pai dos filhos dela iria para o pau de arara?” “Acho que ela está desesperada e se agarra a qualquer possibilidade para proteger a si e aos filhos.” “Você me conhece, eu nunca faria mal aos meus filhos.” “Não, eu não te conheço mais.” Ali acabou nossa amizade e, até hoje, passados 25 anos, nos cumprimentamos burocraticamente quando eventualmente nos encontramos. Soube, uns 15 anos depois do ocorrido, que ele havia agredido outra mulher negra, desta feita, uma ex-companheira que o sustentava. Quando jovem, ele ainda trabalhava.
Eis que agora, uma mulher negra agride a companheira e todas as nossas teorias explicativas da violência machista caem por terra (ou não). A violência intra-gênero é o meio do buraco, o mais fundo dele. E eu não tenho explicação! Tenho histórias para contar, pois F. não é caso isolado.
Há muitos anos acompanhei o caso de uma jovem integrante de organização de mulheres negras que afrontava algumas das mais-velhas com seu brilho, competência, vivacidade e também com sua arrogância. Tramou-se um plano para derrubá-la, uma acusação bem urdida de desvio de dinheiro, com o requinte de provas forjadas. Deu certo, parcialmente, mas a megera ardilosa, responsável pelo plano, não contava com a ação da companheira da jovem, que procurou a Manda-chuva e disse: “Manda-chuva, ela suporta tudo, mas se você desconfiar dela, ela morre!” E a magia do feitiço, quando revelada, começa a se desfazer e a Manda-chuva lembrou-se de quem era a jovem e de quem era a outra, e o mal foi desfeito – com demissões, na instituição parceira, como deveria ter acontecido também na instituição negra. Ali, ao contrário, todo mundo relevou o que a bandida fez, com mal-disfarçado regozijo. Fazia parte do jogo da política e ela era “daquele jeito mesmo”, tinha uma história de vida que justificava seu comportamento desonesto, desleal e criminoso, em última instância.
Essa coisa intra-gênero, realmente pega. Eu confesso que me vi explicando a atitude da espancadora de F. a um interlocutor, pelo histórico de violências sofridas na vida, a despeito, obviamente, de não absolvê-la. Mas o caso é que com um homem violento não explico nada, corto-lhe a cabeça e pronto. É uma contradição pesada, admito.
Creio que são essas contradições que levaram F. a permanecer tanto tempo com R., que nos levam a compreender e desculpar as idiossincrasias, os excessos e a psicose de quem amamos. Certamente a psicologia tem explicações mais densas e consistentes. Vôo até onde alcanço. Tenho um casal de amigos heterossexuais que, para mim, são a mostra cabal disso. Ele, um homem negro com histórico de inúmeras violências sofridas. Ela, uma moça bem nascida e bem educada, diferente da maioria das moças negras de sua geração e principalmente do seu local de nascimento. Um dia alguém me conta que ele a espancou e meu mundo caiu, dessa feita eu não podia acreditar. Então a porta-voz da má notícia argumenta que a família da moça rompeu relações com ela, o pai teria dito: “Minha filha, a educação que eu te dei não admite que homem algum te encoste a mão, nem eu! Se você apanha de um homem e escolhe manter-se ao lado dele, você não é mais a filha que eu eduquei.” E parece que, por uma questão de dignidade, os avós acabam se privando da convivência com o único neto. Eu, do lado de cá, não sei mais se continuo amiga deles. Depois de saber disso, nunca mais conversamos.
Antes desse fato, eu havia tomado conhecimento de que o agressor (meu contemporâneo em idade e ativismo) protegera um jovem espancador, membro de um grupo orientado por ele. O mais-velho procurou a jovem negra espancada pelo rapaz e a convenceu a não denunciá-lo, haja vista que o rapaz era um guerreiro valoroso e a denúncia macularia sua carreira política promissora.
Estou em choque. Não tenho respostas. Só situações e mais situações para narrar.
O alento nosso é contar com a coragem de F., que, ao denunciar a agressão e tomar as medidas cabíveis de auto-proteção, deflagrou um debate que, pelo menos no plano interno das organizações de mulheres lésbicas, ocorrerá.
Não tenho respostas, mas penso que devamos investir na delicadeza das relações humanas, na sutileza da entrega do afeto, no respeito construído nas trocas cotidianas. Além de tratar as psicoses! Nada de aceitar tapa na cara e pedir bis, na hora da pegada mais forte. Nada de aceitar que a companheira nos tome da mão o telefone, para resolver pelo jeito estúpido dela, um problema que nossa sutileza está contornando. A violência começa em gestos aparentemente pequenos e se alastra como fogo em capim seco.
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