A PEC DAS DOMÉSTICAS, OS DIREITOS DAS DOMÉSTICAS E O TRABALHO DOMÉSTICO



Provocada pelas ideias férteis e revigorantes da queria Joana Plaza, sugeri que escrevesse um texto sobre a questão da repercussão da PEC das Domésticas no conservadorismo brasileiro (de elite e de classe média). Ela topou e temos aí essa beleza. Obrigada, Joana. 


*Por Joana Plaza Pinto

De vez em quando, temos aquela sensação de incredulidade com as coisas que se lê/ouve por aí. Uma sensação de mundo esquizofrênico muito maior do que a de sempre.

Incomodada que ando, eu que sou muito tímida com os debates públicos à la facebook, blogs e coisas assim, não me aguento calada do outro lado da tela.

Apesar da esquizofrenia média geral, tenho lido também análises boas sobre as reações à Proposta de Emenda Constitucional 66/2012, conhecida como está como PEC das domésticas. A primeira de que realmente gostei foi a de Cidinha Silva, A PEC das Domésticas, os grilhões e as madames, mas vale a pena ler também As serviçais do Brasil, reportagem com Cleusa de Jesus, a famosa liderança do Sindicato das Domésticas de Salvador. Outros tantos li também e não gostei. Se der tempo, explico por quê.

Pessoalmente, tenho dois tópicos a somar à discussão.

Primeiro, se vocês repararem bem, se trata de uma PEC que amplia em muito pouco os direitos das domésticas. O Cfemea explicou direitinho na notícia de 3 de abril de 2013, Novos direitos das trabalhadoras domésticas estão em vigor a partir de hoje: “Até hoje, as trabalhadoras domésticas tinham direito a salário mínimo, à irredutibilidade da remuneração, a décimo terceiro salário, repouso semanal remunerado, férias, à licença-maternidade e licença-paternidade, a aviso prévio, à aposentadoria e à Previdência Social. Com os novos direitos incluídos no Artigo 7º da Constituição, esses trabalhadores terão garantia de jornada semanal de 44 horas, hora extra, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e de seguro-desemprego”.

Ora, o que se percebe é que a única coisa que a PEC faz mesmo é desfazer a Lei 10.208, de 2001, que indicava o FGTS como facultativo para as domésticas (e, portanto, também o seguro-desemprego). No bolso da patroa e do patrão, esse custo é muito baixo: 8% do salário. Faz a conta aí: pra quem paga o salário mínimo, não custa nem R$ 50,00 a mais por mês. Vamos combinar: quem tem empregada doméstica e não pode acrescentar cinquenta reais no custo, é porque não está pagando o que já deve à sua empregada muito antes da PEC. Quem estava pagando tudo que devia menos o facultativo, só vai ter trabalho no começo para fazer o FGTS (e não é tão difícil assim, como o próprio site da Caixa mostra). 

Tem alguma coisa muito errada – esquizofrênica mesmo, como eu já escrevi antes – quando os comentários sobre o impacto da PEC debatem sobre “demissão em massa”, ou sobre “impossibilidade de manter a empregada nessas condições”. Que condições, 8% a mais de recolhimento? Os “novos” direitos das domésticas são bem velhos e quem não estava seguindo administrava sua casa em condições ilegais (para se dizer o mínimo). Enquanto escrevia este texto, me deparei com um outro texto ótimo sobre o “impacto financeiro” dos “novos” direitos das domésticas, que apresenta várias ideias que eu queria dizer (destaque especial para as “contas” dos “custos” da PEC): PEC das Domésticas: não curtiu, faça você mesmo.

Ah, mas e a jornada semanal de 44 horas e a hora extra?
É aqui que entra meu segundo tópico. Quanto tempo se gasta com o trabalho doméstico? No meio das mazelas que se lê sobre a PEC, aparece a recomendação da divisão do trabalho doméstico entre homens e mulheres. Parece bem razoável: aproveitemos a onda da PEC e reivindiquemos o fim da divisão sexual desigual do trabalho doméstico. Também quero! Até que li um “seja feminista, limpe a própria sujeira” e entendi que outra coisa está em jogo nessa história toda: a desvalorização do trabalho doméstico em geral. Depois destas linhas, já deu tempo para pensar e responder: quanto tempo se gasta com o trabalho doméstico? Eu cansei de ouvir mulheres diversas dizerem que “serviço de casa não vence”, o que quer dizer que nunca acaba, que se reproduz e, no fundo, que ninguém colabora com quem faz.

Eu sempre quis ter minha própria casa e comecei a construir essa etapa da minha vida aos 17 anos. Depois de um pouco mais de vinte anos com a experiência de “ter uma casa pra cuidar”, eu cheguei à conclusão de que o tempo do trabalho doméstico é proporcional a três coisas: à quantidade de pessoas moradoras, ao tamanho da casa e à qualidade de vida. As pessoas: quanto mais gente em casa, mais roupa pra lavar e passar, mais comida para ser feita e depois mais louça para lavar etc.; mas também podemos dizer que um idoso acamado demanda por duas ou três pessoas, que uma criança de três anos demanda por duas pessoas e assim por diante, ou seja, gente da casa gera demanda pra casa. O tamanho: quanto maior a casa, mais tempo gasto para limpar e organizar, para gerir e preencher. A qualidade: quanto melhor se quer viver em casa, mais tempo gasto para tornar a casa mais acolhedora, agradável, disponível; manter comidas gostosas prontas, um pão fresquinho para o café da manhã, umas plantas exuberantes para alegrar os olhos etc. Quem não quer? Isso tudo não é óbvio?

Todas as mulheres que conheci resolviam de alguma forma essa equação, de acordo com a materialidade das suas vidas. Uma delas deixava o filho com a mãe para ir trabalhar, deixando a casa vazia o dia todo e comendo na rua (e o filho com a avó); no final de semana ela lavava e passava roupa e dava a faxina que durava a semana toda já que as duas pessoas moradoras (ela e o filho) pouco usavam a casa, quase nunca cozinhava e comia no trabalho ou na casa da mãe (a casa da mãe não conheci, mas poderia adivinhar). Outra morava sozinha, trabalhava meio período, limpava a própria casa de tempos em tempos, comia quase sempre na rua, de vez em quando cozinhava para si em casa, e vivia reclamando das roupas por lavar ou por passar – a solução mais comum era lavar uma vez por mês e passar na hora de vestir; quando dava festinhas em casa, chamava uma amiga para cozinhar e as pessoas convidadas ajudavam na arrumação antes de partirem. Outra ainda morava com outros dois adultos que dividiam a maior parte das atividades domésticas, e contavam com uma empregada diarista para faxinar e passar roupa. Por fim, me lembro bem de uma que trabalhava o dia todo (e às vezes em plantões noturnos), morava numa casa grande com muita gente – um outro adulto morador, cinco crianças de um a dez anos, e muitas visitas alternadas, ou seja, sempre com um ou mais adultos visitantes por ali, às vezes com suas próprias crianças; a solução dessa mulher foi mobilizar os adultos moradores e visitantes a participarem das demandas domésticas conforme suas possibilidades (eram todos trabalhadores também) e, junto com isso, ter empregadas (outras mulheres) em turnos, sempre duas ou mais, muito antes da PEC exigir a carga horária máxima de 44 horas, para que nenhuma trabalhasse mais que 7 horas diárias, alternando para atender a esse tanto de gente junta numa casa muito acolhedora.

Eu fui criada nessa casa cheia de gente, foi nela que aprendi a valorizar o trabalho doméstico porque ele criava o ambiente alegre e intenso em que cresci: o trabalho doméstico feito por muitas pessoas – algumas remuneradas para isso e outras obrigadas por serem moradoras ou visitantes. Essa casa me inspirou a observar que o trabalho doméstico é fundamental, que fazê-lo é muito bom para o crescimento e a organização de si, e, principalmente, que ser remunerado por ele pode ser digno e gratificante. E que uma alternativa não exclui a outra.

Limpe sim a sua própria sujeira, isso é ótimo. Mas saiba que não é só isso que a doméstica faz. Em parte, essa visão restrita tem a ver com o fato de que o trabalho chamado “doméstico” tem sido atendido também por restaurantes por quilo, padarias e lavanderias. Isso diminui a demanda de qualidade para a casa e tem relação também com a diminuição de tamanho da casa.

Debater os direitos das domésticas como se tratasse unicamente de um luxo burguês é desprestigiar o trabalho doméstico como sem importância e fácil de atender – coisa de homem e de classe intelectualizada urbanizada, que acha que casa se limpa em 15 minutos (quando se limpa) e que é melhor pagar restaurantes e lavanderias do que colocar “a mão na água”. Não é o mesmo tipo de raciocínio que leva à ideia de que as domésticas não podem ter direitos porque não são “especializadas” em nada (nada?!), não são “qualificadas”, não geram “lucro”?

Na minha casa tem empregada doméstica. Ela trabalha 40 horas semanais. Em 40 horas, ela limpa a casa, faz o almoço e passa roupa. Isso não significa toda a demanda de trabalho da casa. As pessoas moradoras arrumam as camas, cuidam das crianças (a lista de tarefas aqui seria muito grande para eu detalhar), fazem o jantar, lavam a louça que usam (mesmo quando a empregada está em casa), lavam a roupa no final de semana, cuidam das plantas e dos gatos, fazem pão para o café da manhã, preparam o próprio café da manhã. Isso tudo sob o estímulo, exigência e organização de uma mulher – eu!

Quanto tempo se gasta com o trabalho doméstico? O trabalho doméstico – predominantemente feminino – faz girar nossas vidas, determina a qualidade da nossa existência, do nosso descanso, do nosso tempo. Quem faz o seu? Já parou para pensar nisso?

*Joana Plaza Pinto é feminista, professora, pesquisadora, e, além disso, faz muitos trabalhos domésticos.





Comentários

César disse…
Homem, branco, alinho-me há decenios à luta da trabalhadora doméstica. Não apenas alinho-me, mas na minha casa, quando morava no Rio de Janeiro, a empregada era respeitada em todos os sentidos, inclusive salarialmente. Fico feliz de ver essa luta, pelo menos parcialmente, dando resultados positivos.
Como é difícil abolir a escravatura, mais de cem anos após o 1888!
Parabéns a vocês, Cidinha e Joana.
Cesar Barroso
Miami, Flórida.

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