Branquitude! Tremei! A PEC das Domésticas veio para ficar.
Por Cidinha da Silva
A
crônica “A PEC das Domésticas, os grilhões e as madames”, é o texto autoral de
maior repercussão no meu perfil do Facebook. Ele unificou os três medidores de
leitura e impacto em dados positivos: muitas “curtidas”, bom debate e número monstruoso
de compartilhamentos, cerca de 860. Para este último item aferidor contribui a
divulgação feita por páginas como as Mães de Maio, que o adotaram e
reproduziram em larga escala. A PEC superou o hit anterior, “Madalena,
vereadora transexual e o mendigo caucasiano”. Em ambos a análise política
profunda de um tema da ordem do dia, por meio de linguagem simples foi a
tônica.
A
reverberação de dois textos de destacada conotação política me felicita muito.
Em que pese contribuírem adicionalmente para a maioria das pessoas voltarem a
me cristalizar no lugar do ativismo político, sem o dinamismo da escritora, da
artista que tem opinião sobre o mundo e suas coisas e a expressa, diariamente,
por meio da escrita, ora opinativa, ora ficcional.
Outro
dia li e reproduzi o posicionamento político de Elisa Lucinda sobre o caso
Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Houve um
comentário que me deu alento, alguém dizia: “é bom termos uma artista negra que
se posiciona politicamente.” Pensei com o meu teclado: tomara que não demore o tempo
em que eu também seja compreendida assim. Mas, para minha tristeza, passando o
mouse pela tela, esbarrei na seguinte apresentação do texto de Elisa,
compartilhada por uma fã: “artigo necessário da poeta e militante Elisa
Lucinda.” Ora, quem conhece Elisa, só um pouquinho, sabe que ela prima pela
liberdade do fazer artístico, que não empunha bandeiras, fala o que quer e
quando quer, produz uma poética única, que a define como grande poeta. Mas,
como tem opinião e é negra, a fã a colocou no limbo da militância.
Talvez
fizesse bem às pessoas, muitas delas estudantes de pós-graduação, lembrar-se
dos vários ritos de passagem da academia em que foram acusadas de serem
militantes. Só para refrescar a memória: quando tiveram seu projeto de pesquisa
sobre temática racial questionado por suposta militância, simplesmente porque
era afrocentrado. Quando durante a entrevista para mestrado ou doutoramento, os
candidatos e candidatas negros são lembrados de que estão ali para estudar,
para produzir conhecimento científico e não para militar. Quando no momento da
defesa, os próprios orientadores e orientadoras, antigos apoiadores da opção
analítica daqueles candidatos e candidatas, ao invés de postar-se ao lado deles
para defendê-los e às suas escolhas, jogam-nos às feras co-irmãs e os relegam à
vala comum da teimosia militante nos referenciais teóricos eleitos.
Mas
voltando ao que realmente importa, o texto, os títulos referidos acima são de
análise política e foram extraordinariamente lidos e debatidos. O que não é
comum no cyberespaço de uma escritora pouco conhecida, que não é jornalista e
ainda menos, é colunista de algum veículo impresso de massa (ou alternativo),
ou de grandes portais, tais como Terra e UOL. Isso alegra esta autora que nutre
considerável cuidado estético pelo que escreve.
São
textos que balançam os alicerces da casa grande, símbolo de poder precioso para
os beneficiários da branquitude. A leitura e sua reverberação suscitam reações
exasperadas nos herdeiros como quem vai ao mato, erra a folha no momento da
higiene e se limpa com cansanção. Coitados! Estão sofrendo a dor da perda dos
privilégios, ainda insignificante, (a perda), mas já os apavora, a eles, sempre
acostumados a ter tanto, a ter tudo.
Cinicamente
frágeis, acusam as vozes politicamente posicionadas de emitirem discursos de
ódio. Desse modo, descontextualizam a expressão utilizada pelos negros
sulafricanos em luta contra o apartheid. São cretinos e covardes, escondem-se atrás
do carinho utilitário do escravizador pelo descendente do escravizado. Dizem
que são pobres brancos (individualistas), que não têm culpa das desigualdades
vividas pelas pessoas negras hoje. Por favor, cara pálida, não se trata de
culpa, trata-se de responsabilidade coletiva, e o lado de cá já vem fazendo sua
parte há tempos. O problema é que vocês entendem os privilégios hereditários da
casa grande como direito de superioridade vindo dos céus, mas, sabemos, foram
mesmo consolidados em séculos de exploração humana racializada.
O
cheiro do verniz usado para disfarçar o cinismo dessa gente embrulha o
estômago, vejamos:
“Os direitos de todos são
incontestes. Mas, ao fazer generalizações sobre os brancos, vc que escreveu
neste banner, está agindo de forma racista. existem pessoas boas e más, em
todas as etnias. um erro não justifica o outro. os erros cometidos contra os
africanos não justificam o seu preconceito com qualquer outra etnia. ao
contrário, assim, vc age igualmente a um branco que é babaca. ou seja, não há
mérito: suas palavras demonstram ser vc. Cidinha, igualzinha a eles,
escravagistas.”
“As mudanças são
necessárias, isto é óbvio! Mas são muitas as mudanças necessárias, a começar
pela necessidade de não ver patrão como vilão, que, afinal, é quem garante o
pão. Seja doméstico ou não, todo trabalhador tem direitos... Eu tenho uma boa
formação acadêmica e muitos anos de carreira como professora no estado e no
município do RJ, entretanto, historicamente, não vejo, como ninguém vê, a minha
classe ser tão respeitada, seja no serviço público, seja na iniciativa
particular. O direito à creche, por exemplo, quantos trabalhadores têm isso
garantido pelo empregador? Mudar é preciso: sejamos realistas... Agora, após
comemorar as conquistas, sinceramente, me pergunto preocupada pelas
domésticas(não pelos patrões) como será a vida de quem sempre dependeu de um
emprego fixo, especialmente se incluísse moradia.... O discurso de ódio não
levará a lugar algum, minha cara, e, se bobear, pode até tirar o brilho da
conquista. Ah... lembrei de um caso interessante: faxineira resolve mudar de
vida e investe na própria formação, tornando-se professora de educação
física.... perante a realidade do mercado de trabalho, resolve voltar ao
trabalho doméstico para tentar juntar dinheiro e montar sua própria academia.
Que tal?!”
Confesso-me
preguiçosa para dialogar com esse tipo de comentário, pois trata-se aí da ausência
de lições básicas de letramento racial, com as quais não lido mais, mas, as
queridas Josemeire Alves e Vanessa Beco, generosas companheiras de caminho e
ativistas de verdade, mais jovens e mais pacientes, o fazem por mim.
“ Eu sou alguém que começou ainda criança a trabalhar em casa de
pessoas próximas e em pouco tempo, no início da adolescência eu já estava no
chamado "Casa de gente rica" ou "Casa de Família" e fui por
que tornou-se pela vulnerabilidade da maioria das famílias negras uma tradição,
a família que explorou minha avó, depois explorou minha mãe, meu tio e minha
tia (filhas de minha avó) e depois eu como primeira neta não poderia fugir da
"tradição" e fui também ser explorada. Minha avó relutava em me
mandar por que havia me encaminhado a escola para eu ter um futuro diferente,
mas diante das dificuldades que se apresentavam eu tive que ir pra casa das
madames para ajudar nas despesas. A essa altura minha avó que tinha trabalhado
a vida inteira na casa delas, estava doente, sem aposentadoria, sendo mantida
por uma
das filhas e o tempo todo com o conflito lhe perturbando a alma, porque ela era
a chamada "pessoa da família", ela gostava da patroa com quem tinha
passado longos anos quase de segunda a segunda e de repente ela não tinha mais
contato, quando resolvia revê-la tinha que se deslocar até a moradia da antiga
patroa em um bairro da elite belorizontina e em alguns momentos era mal
recebida.O trabalho e dedicação de uma vida inteira não tinha lhe servido para
quase nada, e olha que minha avó ainda se diferenciou porque constituiu família
em um tipo de trabalho que muitas não puderam ter vida social. A vida toda como
"pessoa da família” não lhe serviu de nada quando ela envelheceu. Foi
muito duro sair desse ciclo vicioso e garantir uma trajetória diferente para
meu filho e minha filha. Essa tranquilidade que a Nazaré (outra comentarista)
ainda hoje fala da pessoa que trabalhou na família dela e agora está como
grande parte das trabalhadoras domésticas mais velhas, sem condições dignas de
viver com autonomia, com independência, sem família estruturada, e vivendo de
favores de descendentes de seus antigos patrões que ainda falam disso numa rede
social com a maior tranqüilidade, como se estivessem plenamente certos, além
dos velhos , enjoados e desrespeitosos lamentos de que vai haver desemprego e
sei lá mais o que...Os tempos difíceis continuam, por que a comodidade,
ignorância e manutenção de privilégios continuam. Então, A LUTA TAMBÉM
CONTINUA... (Vanessa Beco)”
“ Em 1914, um articulista inconformado manifestava-se assim, no
Jornal "O Progresso" (sic), que circulava em Uberabinha (atual
Uberlândia):
"Estas pretas
Fui um fervoroso adepto da liberdade dos pretos; folguei immensamente com a extincção dessa mancha negra que aviltava o meu amado Brasil; achei e acho ainda boa, justa e santa, a lei de 13 de Maio de 1888.
Entretanto sempre pensei que essa lei devia ter dado aos pretos uma liberdade com restricções; devia libertando-os, impor-lhes a obrigatoriedade do trabalho.
A falta dessa cláusula foi conveniente e prejudicial: trouxe, naquele tedmpo grandes prejuisos à lavoura e, ainda hoje occasiona inconvenientes aos trabalhos domésticos, pois é raro encontrar-se um preto, ou uma preta, que seja assíduo no serviço, ou mesmo que se queira sugeitar (sic) a elle.
As sras. Morenas (chamal-as de pretas é uma grave offensa!) então são intoleráveis!
Querem andar muito bem vestidas, melhor ainda do que as patroas, serem tratadas com muitas attenções, não gostam de serviços grosseiros...
(...)
Ah! Se eu fosse autoridade tiraria as cócegas a essas morenas enthusiasmadas...
Tições!"
[Estas pretas, In: Jornal O Progresso. Anno VIII, nº363, de 04/10/1914, p. 01]
Qualquer semelhança com a atualidade não é mesmo simples coincidência.
Que a força e a proteção ancestral nos inspirem nas lutas de todo dia!” (Josemeire Alves)
"Estas pretas
Fui um fervoroso adepto da liberdade dos pretos; folguei immensamente com a extincção dessa mancha negra que aviltava o meu amado Brasil; achei e acho ainda boa, justa e santa, a lei de 13 de Maio de 1888.
Entretanto sempre pensei que essa lei devia ter dado aos pretos uma liberdade com restricções; devia libertando-os, impor-lhes a obrigatoriedade do trabalho.
A falta dessa cláusula foi conveniente e prejudicial: trouxe, naquele tedmpo grandes prejuisos à lavoura e, ainda hoje occasiona inconvenientes aos trabalhos domésticos, pois é raro encontrar-se um preto, ou uma preta, que seja assíduo no serviço, ou mesmo que se queira sugeitar (sic) a elle.
As sras. Morenas (chamal-as de pretas é uma grave offensa!) então são intoleráveis!
Querem andar muito bem vestidas, melhor ainda do que as patroas, serem tratadas com muitas attenções, não gostam de serviços grosseiros...
(...)
Ah! Se eu fosse autoridade tiraria as cócegas a essas morenas enthusiasmadas...
Tições!"
[Estas pretas, In: Jornal O Progresso. Anno VIII, nº363, de 04/10/1914, p. 01]
Qualquer semelhança com a atualidade não é mesmo simples coincidência.
Que a força e a proteção ancestral nos inspirem nas lutas de todo dia!” (Josemeire Alves)
Enfim, ter uma empregada que é quase um bem de
família, digo, quase da família, só é bom para o conforto cínico dessa gente
que perde os dedos, mas mantém os anéis.
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