Cavalo das alegrias
Por Cidinha da Silva
Belo Horizonte amanheceu triste.
O cavalo das alegrias foi trotar em outras montanhas. Junto das Pretas Velhas
que o iluminavam desde Pirapora, das barrancas do São Francisco, rio de
carranca nos barcos para espaventar espírito ruim das águas.
Sem dons divinatórios, tampouco a
ajuda de um oráculo, arrisco-me a dizer que Marku Ribas era de Exu, senhor de
todos os começos. Pareado por Iansã e Xangô, e a tenacidade de Obaluaê, talvez,
aquele que insistiu em viver. Difícil intuir
dele a regência do Ori, tamanha a convergência de forças da natureza representada
por sua presença de magma e de liberdade.
Doce como um beija-flor para
brincar com a voz e nos fazer suingar mesmo que amarrados. Intenso como a
trilha sonora exatinha para namoros calhentes e deslizantes. Forte e assustador
(atraente) como uma carranca para dizer coisas inusitadas e de esguelha às vezes, como
retirar de Milton a coroa da voz de Minas e deixar interdito, para quem
quisesse entender, que ele, Marku, era a voz das Gerais. E o músico criativo e
intempestivo, por anterioridade e posto, tinha autoridade para dizê-lo, afinal,
Minas são muitas. Não foi o que disse o Rosa? Ou terá sido Drummond? Mas o canto
de Milton é a voz de Deus. É a voz de Minas. É a minha voz. Ponto final.
Esse pessoal que ouve Roberto
Carlos como aquecimento para uma noite de amor, precisa conhecer Marku Ribas.
Não há kundaline que durma sossegada quando ele canta. Ele acorda a libido do
mortal mais inerte.
A primeira vez que o vi presencialmente
me traumatizou. Faz mais de 20 anos, na UFMG. Creio que ele voltava da Europa e
fixava residência em BH. Aceitou convite para fazer uma pequena apresentação em
evento promovido por um grupo de estudantes negros (lembra, Adélcio?). O cachê
era ridículo, o som impronunciável de tão ruim e ele um artista magnífico, que
entre outras façanhas tocara com o Rolling Stones. Marku ficou tão injuriado
com a péssima qualidade de tudo, que, depois de criticar as pobres promotoras
da coisa e um ingênuo grupo de Rap que também se apresentou, antes dele, por
suposto, rejeitou o microfone e tocou a capela.
Depois passei anos vendo-o pela
TV, até que fui assisti-lo no Sesc Pompeia, em São Paulo, numa participação em
show de uma banda de mulheres. Ele arrasou, junto com o querido Rubi, antítese
dele, de energia mais convergente, pelo menos naquilo que um rio converge.
Menino suave. De Oxum. De Logun.
Marku passou por mim e outras
pessoas que aguardavam a apresentação. Carregava um cabide com a roupa do show
e nos cumprimentou. A nós, pretas parecidas com tantas outras que o admiravam
mundo afora, ele mirou como velhas conhecidas. Brincou conosco, perguntou se
íamos assistir a banda. Íamos. Ele então nos disse com um olhar de céu e mar,
que seria muito bom estarmos juntos.
No Brasil, alguns o comparam a
All Jarreau, não sei. Fã e seguidora que sou deste mago do instrumento- voz, penso que Marku é ainda maior, porque tem uma
composição singular, cujo exercício de aprimoramento exigiu-lhe toda a vida.
Para mim, sua música é irretocável, não digo o mesmo das letras, principalmente
pela forma estereotipada como apresenta as mulheres, isso me incomoda.
Artistas imensos como Ricardo
Aleixo, Rui Moreira, Paulinho Pedra Azul, Grace Passô, Maurício Tizumba, Gilvan de Oliveira, Leda
Martins, Titane, Gonzaquinha, que não sendo mineiro como também não o é o
inventor da Será Quê, escolheu viver em BH, antes do acidente trágico. Esses
artistas saem das alterosas, bebem as águas do mundo de fora e voltam
revigorados para Belo Horizonte, nascente de onde fluem para o mundo. Eu os
admiro demais. Eles têm uma coragem e um amor a este pedaço de Minas que nunca
consegui desenvolver, talvez por isso, porque amor e coragem não são matéria
para tentativas, quando chega a hora de vir, brotam. Marku Ribas também era
como os grandes, amava Belo Horizonte.
No Aiê, Cavalo das Alegrias, nós guardamos silêncio para escutá-lo, enquanto por aí, as as avós
Maria Conga e Curtinha, no
mesmo silêncio nosso, preparam o palco para a folia do cantador.
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