Feras de lugar nenhum
Ao procurar imagens do livro que dá título a este texto, deparo-me com artigo de uma auto-intitulada jornalista sobre a obra, resolvo lê-lo. Ela anuncia que falará sobre o autor, Uzodinma Iweala e, para minha surpresa, tudo o que ela diz se refere a Ismahel Beah. Os dois têm algumas coisas em comum: são escritores, negros, africanos, belos, jovens, estiveram na FLIP – Festa Literária de Paraty - Uzodinma, em 2006, e Ismahel, em 2007. Lançaram por lá os respectivos livros que tratam de crianças obrigadas ao alistamento de guerra em países africanos. Mas nenhuma das possíveis semelhanças levaria alguém que tivesse feito leitura, ainda que breve, da obra de um ou de outro, a confundi-los. Entretanto, a moça conseguiu fazê-lo, assarapantou os pretos e as obras, e o pior, mesmo sendo jornalista, não checou a consistência das informações. São dois os erros imperdoáveis, baralhar os autores e mesclar o conteúdo das obras. A escriba assevera o horror da situação de guerra vivenciada por Uzodinma, tão terrível que ela nem deixaria o filho ler o livro. Santa leitura torta, Uzodinma não viveu guerra alguma, ele criou uma ficção, muito provavelmente, baseada em fatos. É um jovem negro, de classe média, nascido e criado nos EUA, estudante de Harvard, mas com identidade africana, define-se como nigeriano, porque essa é sua a ascendência familiar e ele se sente intimamente vinculado a ela. Aliás, o livro, “Feras de lugar nenhum”, foi escrito como trabalho de conclusão da graduação de Uzodinma no curso de literatura, na Universidade de Harvard. Incentivado por uma professora, ele o inscreveu no Yongue Lions para ficção, destinado a autores com menos de 35 anos e venceu. O jovem escritor divide a vida entre Washington D.C., USA e Lagos, Nigéria, mas nunca foi um “menino da guerra”. Ismahel, por sua vez, autor do maravilhoso “Muito longe de casa”, foi obrigado pelas forças rebeldes a compor um regimento de guerra em Serra Leoa, por cerca de dois anos teve a vida interrompida por batalhas que não era dele e depois de algum tempo, recuperado pelas Nações Unidas e adotado por uma família estadunidense, iniciou a carreira literária com um livro auto-biográfico. É promessa de um grande escritor. Um preto é um preto, o outro preto é outro preto, mas compreende-se, um preto escritor incomoda muita gente, dois pretos escritores incomodam muito mais, faça-se a fusão. Ademais, a cultura literária de orelha de livro ou baseada em lista dos mais vendidos é confusa mesmo. Feito o preâmbulo elucidativo passemos ao “Feras de lugar nenhum”, obra de Uzodinma Iweala. Ainda sobre o autor, gostaria de dizer que o conheci na FLIP de 2006 – conhecer é força de expressão – assisti à apresentação dele e fiquei muito impressionada pela propriedade com que respondia às questões de analistas e da platéia e principalmente pela recusa peremptória a se pronunciar sobre questões capciosas acerca de raça e relações raciais, porque, conforme declarou, “estava no Brasil há menos de uma semana e passava quase todo o tempo no hotel. Havia reparado apenas, a presença de muitos negros nas ruas, prestando pequenos serviços ou vendendo coisas, e poucos negros como palestrantes ou público da FLIP.” O livro é bom mas se impõe mais pela força do tema do que pela qualidade literária. Talvez a tradução não tenha encontrado alguns dos sentidos mais adequados para construções em inglês, com pulsação africana e, como resultado, o texto adquire uma tônica meio infantil, até imbecilizada, em alguns momentos. A enunciação das construções poéticas também não se efetiva. Mas, não li o original (nem sei se teria inglês suficiente para avaliar) e fico em dúvida quanto à autoria dos problemas, se do autor ou da tradução. O livro aborda a vida de um menino, Agu, que depois de fugir de um ataque que matou todos os homens e crianças do sexo masculino da aldeia onde vive, é capturado por outro menino, um soldado, provável integrante do grupo que dizimou seu povo e é obrigado a tornar-se um menino-soldado também. Aqui aparece o primeiro problema estrutural do livro, conta-se que um caminhão da ONU passou na aldeia antes do ataque e levou as mulheres, meninas e bebês do sexo masculino e meninos muito pequenos, para um campo de refugiados. Os homens e meninos maiores ficaram para “defender” a aldeia. Mas, com que armas, que armadilhas, que estratégia de defesa? Quem decidiu que eles ficariam? A ONU? Um chefe da aldeia? A mãe de Agu queria levá-lo, mas alguém impediu, ele já era grande, deveria ficar com os outros homens. É uma passagem de desenho turvo, pouco consistente. E a força do tema se impõe, porque uma leitura crítica com algum conhecimento da situação descrita apontaria o problema facilmente. Mas o tema da guerra, principalmente do aliciamento de crianças, nos comove, a todos, e leva-nos rapidamente às próximas cenas com o desejo de que o terror acabe e temor de que se exacerbe. É imperioso passar à próxima cena, aconteça o que acontecer. No primeiro dia de Agu no acampamento, ele é espancado pelo garoto que o capturou, é apresentado ao comandante e rapidamente aprende as regras de obedecer para sobreviver. Depois aprende a matar para não morrer, a não ter piedade ou qualquer outro tipo de sentimento humano para ser um soldado. Ozodinma é muito feliz e corajoso na abordagem do tema do abuso sexual e dos estupros reiterados, sofridos pelos meninos-soldados, praticados neste livro pela figura do comandante, o emblema do poder que, em situações reais, deve se estender a todos os que estão em situação de mando e podem subjugar os garotos. Outro problema estrutural do livro é o momento da saída de Agu da guerra. É exigido de quem lê, conhecimento prévio sobre as possibilidades de saída, por exemplo, o resgate que as Nações Unidas fazem das crianças-soldados. Caso esse conhecimento inexista, é difícil perceber o que aconteceu com Agu e onde ele está. Ao final do livro, Agu diz para a terapeuta: “se eu contar todas as coisas que fiz, você vai pensar que eu sou uma espécie de fera ou diabo. Amy nunca diz nada quando falo isso, mas a água em seus olhos brilha. E digo a ela, tudo bem. Sou todas essas coisas. Sou todas essas coisas, mas uma vez já tive uma mãe, e ela me amava” (p.187). Senti falta dessa humanidade de Agu durante a leitura, dessas memórias que devem ter sido a única coisa a mantê-lo vivo, enquanto ele pensava em todas as coisas que fez: “Se mandavam MATAR, eu matava, ATIRAR, eu atirava, ENTRAR NA MULHER, eu entrava na mulher, sem dizer nada mesmo que não estivesse gostando. Matei todo mundo, mães, pais, avós, soldados. É tudo a mesma coisa. Não importa quem seja, só que morram. Fico pensando pensando. Acho que não consigo mais fazer isso” (p.180).
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