Antologia do quartinho de empregada no Brasil
Por Cidinha da Silva
Durante a realização do
fórum de Vilas e Favelas e 11ª Semana Nacional de Museus / IBRAM, em maio deste
ano, o MUQUIFU – Museu de Favelas e Quilombos Urbanos foi apresentado à
população de Belo Horizonte. A primeira
exposição permanente do museu também foi aberta: Doméstica, da Escravidão à
Extinção – Uma Antologia do Quartinho de Empregada no Brasil, com curadoria de
Mauro Luiz Silva.
A respeito das
trabalhadoras domésticas e sua luta por direitos, vale lembrar que a recente
aprovação da PEC das Domésticas estremeceu os alicerces ainda intactos da casa
grande. Ao lado do julgamento do Mensalão, no campo do judiciário, a Pec das
Domésticas, no âmbito legislativo, promove mudanças paradigmáticas no tratamento
destinado aos donos do poder (políticos do Mensalão) e às que nada têm
(trabalhadoras domésticas) rumo à promoção da igualdade e da justiça social.
A que pilares da casa
grande refiro?
1 – Ao hábito da classe
mérdia de manter em casa alguém remunerado (mal remunerado) para fazer todo o
trabalho chato e indesejado. Resquício dos tempos da escravidão quando os
brancos tinham seu valor aferido pelo número de escravizados sob seu comando e
posse.
2 – Ao hábito dos ricos e
endinheirados de ter em casa trabalhadores aos quais possam mandar, humilhar e
agredir.
3 – À estratégia de mal
remunerar a esta categoria profissional e não reconhecê-la como aos demais
trabalhadores, porque, afinal, domésticas trabalham dentro da casa dos patrões,
dormem numa dependência especialmente pensada e construída para elas, o
quartinho de empregada. É fundamental tratá-las assim para que as coisas se
mantenham em seus devidos lugares. Para que a ideologia da casa grande prossiga
inalterada.
4 – Dar à trabalhadora
doméstica a sensação de que o empregador faz favor ao contratá-la. Como é
sabido, os favores prestados para fidelizar o favorecido a quem protagoniza o favor gera
ônus. Objetiva criar um clima de gratidão por parte da trabalhadora doméstica, que
leve-a a sentir-se honrada em trabalhar para aqueles patrões em jornada excessiva,
sem uma legislação que a regule.
5 – A trabalhadora
doméstica na mentalidade colonial da casa grande tem status inferior ao
cachorro da casa que, por sua vez, merece tratamento vip. O cão pode circular
por todos os compartimentos da moradia e fazer o que quiser em qualquer um
deles, tendo a trabalhadora doméstica para limpar suas necessidades
fisiológicas.
A PEC das Domésticas não
apresenta novidades significativas para quem já cumpria os direitos
trabalhistas da categoria, efetivamente, acrescenta 50 reais aos encargos por
salário mínimo pago a uma trabalhadora. Entretanto, o mundo da casa grande veio
abaixo. Esgotou-se o estoque de livros de ponto nas papelarias. O mercado dos
relógios de ponto foi incrementado com vistas a registrar o tempo trabalhado,
demarcar o inexistente horário do almoço e, acima de tudo, evitar o pagamento
de horas extras, regulamentadas depois de 77 anos de lutas do Sindicato das
Trabalhadoras Domésticas.
A aprovação da PEC das
Domésticas não traz mudanças significativas ao que a classe patronal desembolsa
para remunerá-las, mas traz mudanças simbólicas na abolição inacabada da
escravidão. É a última etapa do processo, hoje, 125 anos depois da assinatura
da Lei Áurea. É a lei que faltava para
dar à trabalhadora negra o status humano que a exploração do trabalho doméstico
lhe rouba.
O quarto de empregada
arquitetado neste contexto representa na estrutura da casa grande (que pode ser
também apartamento), a senzala contemporânea. O lugar-depósito de gente,
desprovido de condições dignas de existir e de viver, acompanhado do respectivo
banheiro.
Falar sobre o quartinho
de empregada, então, diminutivo apenso às dimensões reduzidas e ao lugar de
insignificância que ocupa, é discutir a mentalidade colonial da casa grande
que, como no período da escravidão, valoriza ou desvaloriza as pessoas de
acordo com a função exercida.
O quartinho de empregada,
para as trabalhadoras domésticas, era o local onde, em horas mortas, elas
podiam ouvir no rádio de pilhas colado ao ouvido, as canções de Carmen Silva,
Evaldo Braga e Odair José. Narrativas das tristezas e desventuras de
personagens muito parecidas com elas.
Hoje, mudou o aparelho
sonoro, o rádio de pilhas virou smartphone e acompanha a trabalhadora ao longo
do dia, no fone de ouvido. O repertório talvez tenha mudado, principalmente
para as mais novas. Devem ter passado do romantismo da espera do príncipe
encantado das músicas de Roberto Carlos para o tigrão pegador do funk, para a
tigrona que não anda, desfila e quer ser capa de revista, além de tirar foto no
espelho para colocar no Facebook. Mas a essência é a mesma de tempos antigos,
mesmo que o repertório e o veículo para ouvi-lo sejam contemporâneos, a música
é uma área de respiro no opressivo e abafado quartinho de empregada.
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