Assata Shakur e Nhá Chica
Por Cidinha da Silva
Assata, na década de 70, era
membro do Exército de Libertação Negra, organização de extrema esquerda
estadunidense. Por uma infração de trânsito ou por tocaia armada pela polícia,
tenho cá minhas dúvidas, foi parada numa estrada em 1973. Bem treinada nas
táticas de guerrilha, passou fogo nos tiras, não seria presa. Já era fichada e
perseguida por ações ligadas ao Exército de Libertação Negra. Estava
determinada a não ter o destino previsível de Mumia Abu Jamal.
Seis anos depois de ter
protagonizado a morte de um policial e ferimentos em outro, Assata é presa e
condenada à prisão perpétua. Consegue fugir, para estupefação dos poderes
instituídos.
Notem que é presídio dos EUA, não
é cárcere brasileiro onde o pessoal usa celular para se comunicar com o mundo
exterior, pede comida pelo serviço de delivery, faz festa pelo aniversário de
um, pelo sucesso da entrega de um carregamento de drogas ou armas num destino
perigoso. Onde os carcereiros prestam favores aos presos, do empréstimo dos
celulares ao agenciamento de visitas íntimas, em troca de dinheiro para comprar
o material escolar dos filhos, a cadeira de rodas do sobrinho.
Mesmo que não houvesse celular
para ninguém naquela época, presídio lá de fora para pessoas consideradas
perigosas era e continua sendo jogo duro, o que nos leva a crer que gente
graúda e um esquema profissional, cuidadosamente planejado deram retaguarda
para que Assata conseguisse fugir. Para Cuba, segundo o que noticiam.
É previsível que o FBI em 2013,
depois de anos de fuga eficaz de Assata, a enquadre na categoria de terrorista
de alta periculosidade. O que espanta é que nós durmamos ao som dessa
metralhadora giratória e reproduzamos acriticamente a informação cifrada,
fazendo festa para o inusitado.
Enquanto brincamos de ser felizes
porque temos a primeira mulher (e negra) na lista top dos 31 terroristas
procurados pelo FBI, em Baependi, cidade do interior de MG, outra cena da
legitimação conservadora se desenvolve.
Francisca Paula de Jesus, mulher
analfabeta e leiga, filha de mãe escravizada, conhecida como Nhá Chica, é a
primeira negra a receber o título de beata concedido pela Igreja Católica do
Brasil. Não sei bem o valor disso, mas sei que o destaque ao fato de ser
analfabeta, indica que esse tem sido um mérito concedido às letradas que liam a
Bíblia, mas talvez não praticassem o amor e a caridade como Nhá Chica. Que ser
leiga indica não ter o amparo de qualquer congregação religiosa, usualmente
poderosas, pela simples existência.
Finalmente, Nhá Chica é negra e
filha de escravizada, isso rompe com padrões brancos hegemônicos e a inscreve no
nosso panteão de heroínas. Aplaca momentaneamente nossa carência de ícones que
tenham história parecida com a nossa.
Compreendo a alegria dos que
acreditam em Nhá Chica porque conheço um pouquinho a operacionalidade da fé.
Mas, júbilo, do lado de cá, sentirei no dia em que o poder opressor da Igreja
se curvar às forças conspiratórias do universo para a promoção da liberdade e
da altivez, representadas por gente como
Anastácia.
Eu jogo no time dela, aquela cuja
existência a historiografia questiona. Que é vivíssima na memória do povo. Que
passou por tantas gerações desde o século XVIII pela tradição oral. Que é filha
de Obá em nosso imaginário infinito e imortal de luta para sermos livres e plenas.
Eu jogo no time de Luiz Gama.
Todo escravizado que mata o escravizador, o faz em legítima defesa. Se for
preciso, a gente descansa a pena de Nkossi e faz o xirê do fogo. E se cair, a
gente cai de pé, atirando, como Assata.
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