O Ficaralho


“Semana passada vi a alegria de amigos que perderam o emprego. E vi a depressão, o choro dos que sobraram na redação, agora acumulando funções, fazendo o trabalho de 3, repetindo uma rotina que não parece ter qualquer propósito senão o precarizado salário. As demissões são, na verdade, Ficaralhos. Se fode quem fica”
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Um Passaralho só não traz o inverno: Estadão, Trip, Folha de S. Paulo, Record. Todas empresas demitindo de uma vez dezenas de jornalistas e profissionais de mídia nas últimas semanas… e ainda aguardamos o profetizado Passaralho da Abril que, pelos rumores, vai decepar até 1000 funcionários e 10 títulos da editora. O que, tantos acreditam, vai levar à mendicância os já paupérrimos frilas. “RIP Jornalismo”, é o que tenho lido e escutado dos colegas nas redes e botecos.
Mas vamos apurar essa história direito…
É o jornalismo em si que está moribundo? Ou o modelo comercial de distribuição de informação?
É o ofício de catalizar o diálogo público com fatos e opiniões que está com os dias contados? Ou o pensamento analógico, ganancioso, baseado em números de circulação e venda de publicidade?
Não estaremos confundindo, reféns da tediosa periodicidade de publicações e salários, jornal com jornalismo?
Para mim, há uma maneira mais interessante, e realista, de entender a revoada dos Passaralhos.
Já vi e vivi demissões coletivas. E, aos poucos, deu para notar uma mudança crucial no Day After. Antes os deprimidos, os arrasados, os desamparados eram os que perderam a vaga. Eram como se tivessem sido explusos de uma festa que iria seguir sem eles. Hoje, a tristeza está bem mais do lado de quem ficou. Como se a festa estivesse, e está, do lado de fora.
Semana passada vi a alegria de amigos que perderam juntos o emprego, animados pela fronteira aberta. E vi a depressão, literalmente o choro dos que sobraram na redação, agora acumulando funções, fazendo o trabalho de 3, repetindo uma rotina que não parece ter qualquer propósito senão o precarizado salário. Ficou claro para mim.
As demissões são, na verdade, Ficaralhos. Se fode quem fica.
Creiam… Não é necessariamente uma tragédia ter tantos, e bons, jornalistas na rua sem muita chance de voltar a um emprego formal tão cedo. Pode ser, ao contrário, uma excelente notícia. O ambiente perfeito, na ausência de gabinetes e editores, para o jornalismo se reencontrar na rede e nas ruas. Há o potencial de uma idade de ouro da reportagem hoje em dia.
A consolidação das redes sociais, o hiperfluxo de informação, o streaming e a emergência de uma massa conectada pronta para repercutir e compartilhar notícias e histórias, deu ao veículo tradicional um papel cada vez mais dispensável. Mas pede ao repórter, ao fotógrafo, ao designer, ao colunista um papel cada vez mais ativo de oferecer matéria-prima e contexto para o diálogo público. Ao se confundir com um nome no expediente, ao se condicionar ao falso conforto de um salário, o jornalista vira às costas ao seu maior ativo, a autonomia. E acaba no confortável e cínico papel de vítima da “morte do jornalismo”.
Para mim uma coisa é clara: a rede vai matar o jornal para salvar o jornalismo.
Ok. Tudo muito bonito, muito estimulante. “Mas e o dinheiro”, perguntam os colegas, “onde está?”. Uma coisa eu garanto: não está nas redações. O pouco que sobrou não vai dar nem para a janta.
Eis a parte mais arriscada, e inevitável, da missão dos filhos do Passaralho. Criar um novo mercado para sustentar suas famílias e reportagens a partir da lógica de compartilhamento. Sem o antes conveniente e inevitável, a agora parasitário e dispensável, publisher.
Tenho certeza que é esse o sentimento, intuitivo ou não, de riscos e possibilidades que está dando essa felicidade súbita aos demitidos.
A esses eu faço o convite:
Semana que vem, terça-feira, dia 11 de junho, vou ajudar a promover junto com o Fora do Eixo e do Existe Amor em SP, uma reunião aberta com profissionais de mídia, desempregados ou a fim de se desempregar, para apresentar um projeto que vem sendo elaborado em fogo brando há mais de um ano. E que agora está no ponto para receber todos os que se animarem com a ideia: NINJA (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação).
Um grupo de comunicação amplo e descentralizado, a fim de explorar as possibilidades de cobertura, discussão, repercussão, remuneração e da radical liberdade de expressão que a rede oferece. Streaming, impressos, blogs, fotos, debates públicos sem o fantasma do lucro e do crescimento comercial como condições primordiais para o trabalho. Por enquanto, nosso melhor investimento é entender a frequente e saudável relação inversa entre saldo bancário e propósito.
Quem estiver a fim de conversar por favor me escreva e fique de olho nas minhas redes. Logo divulgo local e horário dessa primeira reunião.
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PS: A repercussão desse texto tem sido muito maior e mais interessante do que eu poderia esperar. Por isso preciso esclarecer algo sobre uma crítica séria que tenho escutado:
Entendo quem achou que eu estava comemorando as demissões recentes nas redações. Dei brecha para isso em uma ou duas passagens no texto do Ficaralho. Lamento.
Nunca foi meu sentimento ou intençāo celebrar a demissão de colegas e amigos, nem o saldo vermelho de veículos. Tragédias e perrengues pessoais são sempre motivo para nossa solidariedade, nunca festa. E, cá pra nós, também estou absolutamente quebrado e sinto todo dia os sintomas de medo e pessimismo diante de um mercado falido. Mas um mercado que, por tesão e vocação, eu ainda gostaria de fazer parte.
Por isso insisto nos meus pontos centrais do texto.
1) Tenho visto, e não são casos isolados, pessoas rigorosamente aliviadas com a dispensa das redações. Inseguras, hesitantes… mas sobretudo animadas com a alforria forçada. Na mesma medida que tenho visto um clima depressivo e pesado entre os que sobreviveram aos passaralhos. Isso é um sinal de algo que estava passando longe das análises das recentes demissões.
2) O que estava, sim, celebrando é a possibilidade aberta com tanta gente boa solta por aí. Só entre conhecidos meus desempregados – e a fim de criar algo novo – consigo ver algumas das melhores redações possíveis no país. Isso precisa ser colocado na conta, para o bem dos que foram e dos que ficam.
Aceito e penso seriamente sobre as críticas que fazem à minha versão poliana dos fatos. Mas não consigo, nem quero, me render ao vazio das alternativas que os pessimistas não me apresentam em troca.
Acredito e, de novo, celebro a chance de um novo mercado de mídia ser criado de baixo pra cima. Até porque não vejo outro caminho.
Não vem ao caso para mim se redações repletas de CLTs ou PJs são mais justas ou desejáveis. Se não me rendo ao pessimismo, me rendo ao menos aos fatos: esse mundo da mídia vertical, comercial, cara e que pensa analogicamente até em plataformas digitais, não está parando de pé.

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