O fogo, têmpera do aço, como o tempo, têmpera das gentes!




Por Cidinha da Silva

“Onde você for, que o mal se esconda / e não saia do lugar / porque você tem Ogum de ronda / no clarão do seu olhar.”

Naquele agosto de 91, a primavera chegou mais cedo, quando recebi em Belo Horizonte, um telefonema dela. Era o fim das noites de angústia, das tardes bucólicas, burocráticas e tristes no trabalho de apenas sobreviver. Da vida de horizontes curtos, apesar dos 20 anos.

Sueli Carneiro me fez nascer pela segunda vez, quando, atendendo a um pedido meu, me convidou para trabalhar e viver em São Paulo. E por isso serei grata em todas as vidas que me for dado viver. Sou grata também pelas lições aprendidas via Método SC. Contumaz (às vezes duro demais), mas amoroso, tal qual o Método Maia.

Sueli, como a sinto, é essência de ferro, vento, ouro e amor de mãe. Lulu que o diga, aquela que a vida inteira precisou dividir a mãe com o mundo e à medida que cresceu e maturou a menina linda, sentiu orgulho imensurável dela. Confio na irmandade taurina para afirmar.  

Foi Luanda, aliás, quem me propiciou a segunda lição do Método SC. Em uma situação de festa, eu, em Geledés havia três meses, tive a atenção chamada por Sueli, de maneira brusca e desproporcional. Assustada, eu não reagia e Lulu, do alto dos 13 anos e do domínio sobre o coração da mãe, avisou: “mãe, você está machucando a minha amiga, solta ela!” E eu pude respirar.

Aquilo rendeu pesadelos nas férias, dor da falta de entendimento e quando busquei explicações, era tudo atribuído às cervejas. Ficou o mais importante, o tempo tempera as gentes, como o fogo tempera o aço.

A primeira lição foi a generosidade de Sueli ao me dar a vida, sabendo tão pouco de mim, não conhecendo minha família, minha origem, só meus olhos ávidos de vida e certos de que São Paulo era meu lugar no mundo. A aposta de Sueli no meu sonho me ensinou a respeitar as pessoas jovens, a não desdenhar de seus mistérios. Esta foi a mais preciosa de todas as lições e posso afiançar que a aprendi direitinho.  

Quando primeiro cheguei a São Paulo, em 88, para assistir a uma das sessões do Tribunal Winnie Mandela, eu ainda não conhecia Sueli pessoalmente, nem sabia direito como ela era, mas quando vi aquela preta reluzente, pura luz preta no ambiente, de testa reflexiva e sorriso franco, de olhos vivos, atentos ao mundo, ao novo, dedos finos, elegantemente alternados no queixo e microfone armado, pensei, é ela! É esta mulher que escolho para me fazer quem quero ser.

Eu estava hospedada na Vila Sônia e não tinha noção das distâncias da cidade. Então, num domingo, Sueli, que morava perto dali, deslocou-se até o lugar onde eu estava para discutir comigo um projeto de pesquisa, para o qual faltava interlocução na universidade. Eu me senti tão valorizada, tão importante, tão gente, que, a partir daquele momento, passei a dedicar minha vida para provar àquela mulher que o cuidado que tivera comigo, não fora em vão.

E continuei indo a São Paulo todos os anos desde então. Economizava centavos para a viagem à terra que para mim era Sol acima de qualquer cinza. Eu passava muito tempo em Geledés e adorava quando Sueli me convidava a acompanhá-la nas coisas que fazia. Era tanta gente importante que ela me apresentava, gente que olhava para ela com apreço e admiração. E quando eu pegava o microfone, abusada, como sempre fui, ela me ouvia com atenção e olhos enluarados, e sorria. Sorria e balançava a cabeça como Steve Wonder a cantar. E eu me agigantava, Coutinho esgrimindo seus dotes para Pelé observar.

Vinte dias depois do telefonema que adiantou a primavera, me apresentei àquela que passaria a comandar meu exército interior. Ainda demorou mais de dois anos para que eu conseguisse trabalhar diretamente com ela e nesse período fui testada, inúmeras vezes.

No primeiro teste, outra diretora, talvez enciumada pela forma como eu idolatrava Sueli Carneiro e também para demonstrar poder, me ofereceu, na frente dela, uma viagem aos EUA. Eu deveria representá-la numa conferência e ler um trabalho seu. Eu tinha 24 anos, saíra da roça para a cidade grande há pouco tempo e a tentação era grande. Sueli, calada, apenas observava. Serena, agradeci a lembrança e o oferecimento, mas não poderia aceitar porque não falava uma gota de inglês. A diretora insistiu, contrariada, irritada. Argumentou que não era necessário dominar a língua, ela treinaria a leitura do texto comigo. Não, obrigada, eu não falo inglês, reiterei, orientada pelos velhos que sustentam meu Ori e pela certeza da lição aprendida com meus pais, de que na vida, a gente deve ter valor, não, preço.

Foram extenuantes os testes ao longo de vários anos de convivência, também as dores, os jogos de interesses e poder, sacrifícios da vida pessoal e frustrações decorrentes, que foram matando aos poucos a alegria, e me levando a desistir da política e a retomar o sonho da literatura. O saldo é positivo, lógico. Sou quem sou, porque um dia Sueli Carneiro me deu a vida e, justamente, para honrar este presente, entendi que precisava seguir meu próprio caminho e reinventar meu lugar no mundo.

E é essa reinvenção que faço nas crônicas diárias, nos livros, nas intervenções públicas, no aprendizado com as pessoas mais jovens. Minha cidade e minha família me deram régua e compasso. Sueli me deu uma tela ampla para xilografar minha história.

Ogum iê! Sueli Carneiro! Mulher do ferro, do vento, do ouro e do amoroso coração de mãe!


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