As latinhas

Minha editora pauta uma crônica-síntese sobre o Natal, Ano Novo e carnaval, mas só as latinhas povoam minha cabeça sem idéias. Gente procurando latinhas em todos os cantos e praças, cestos de lixo, caçambas e bares, de tocaia nas mãos de quem bebe refrigerante e cerveja. Latinhas por todos os poros, samba triste no meu cocuruto. A senhora branca entra na lanchonete de olho comprido na minha latinha de suco, na latinha mesmo, não lhe interessava o conteúdo. Constrangida, remexe a lata de lixo próxima a mim. Lá se vai o sabor da empada. Pára no balcão e cumprimenta a atendente, pergunta pela colega de trabalho da moça, recebe a informação de que goza férias no Espírito Santo, praia dos mineiros. Sorri e vai embora, não sem antes olhar para minha latinha, ainda bebível. Termino o lanche, entrego o pratinho para a atendente que sorri, agradecida, e algo me diz para deixar a latinha sobre o balcão. Deixo. Saio à rua e a senhora espera minha saída à porta. Penso em dizer qualquer coisa, mas não há tempo, ela abaixa os olhos e a cabeça, entra depressa, recolhe a latinha, retira o lacre semi-aberto e reserva na bolsa. Esvazia a latinha das gotas remanescentes, coloca-a no chão, amassa com o pé e guarda na sacola. Foi mais rápida que a concorrência, mais uns gramas até o fim da noite. Quando chego ao bairro da infância, a vista engana e parece que avisto uma amiga de adolescência catando latinhas. Comento com um irmão e ele confirma o que os olhos temiam ter visto, era a Marilúcia no novo ofício de catar latinhas. Mas o que aconteceu? Ela tinha família, trabalhava, embora fosse para ela mais difícil arrumar trabalho. Era a “sapatão” do bairro, se vestia como menino. Quando passava pelo ponto final do ônibus, cobradores e motoristas cantavam o hit do Chacrinha, sucesso da época: “Maria sapatão, sapatão, sapatão, de dia é Maria, de noite é João”. Ela não dizia nada. Às vezes quando encontrava a gente pelo caminho xingava os caras, mandava uns palavrões e gestos obscenos. Aproveitava para combinar o futebol de salão do final de semana e ia embora. Futsal é coisa de agora. A sexualidade da Marilúcia sempre foi uma incógnita, embora parecesse tão escancarada. Ninguém, nem as amigas, conheceram uma única namorada dela. Ela nem falava de amores-mulheres, que eu me lembre. Era só aquele jeito de se vestir para se comunicar com o mundo, como esse pessoal que tatua vastas extensões do corpo, também como forma de comunicação. Cravejo o mano de perguntas, quero entender as fissuras da trajetória de vida dela. Ele não sabe de nada, só o que todo mundo sabe. Marilúcia ficou muito tempo doente, com um problema no pé ou na perna, não podia andar. Agora, curada, anda pelo bairro e cercanias, uma sacola de supermercado pendurada na mão direita, um cigarro aceso na mão esquerda, que parece nunca acabar, tênis, meia soquete, bermuda e camiseta sem mangas, faça chuva ou faça sol. Sempre muito limpa, limpíssima, descansa o cigarro no canto da boca, fecha um olho pra evitar a fumaça e enfia a mão livre nos cestos de lixo, à procura de latinhas. O que teria acontecido com a Marilúcia, meu Deus? Invento uma história de liberdade para distingui-la da massa de catadores, anônima e depauperada. É isso. Ela teve uma doença que a privou de movimentos, recuperou-se e agora, senhora de si, explora a liberdade de não ter patrões, de vasculhar a intimidade das casas nos cestos de lixo. O Chacrinha já era e ela canta uma música da gaúcha Luka, sucesso garantido na lembrança do programa de auditório do Velho Guerreiro: “tô nem aí, tô nem aí”...

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