Thiago de Mello, o amigo de José Lins do Rêgo
Tudo transcorre como previsto no documentário de Vladimir Carvalho, “O engenho de Zé Lins”, enquanto o filme narra a infância de um menino morador da casa grande, num engenho interiorano da Paraíba. Um garoto peralta, a despeito da asma e da melancolia pela falta da mãe desde os seis meses e pela orfandade de irmãos. Até que aparece o padre e declara que a tia prendia o menino Zé Lins dentro de casa, não só pela asma, prática exigida pelos tratamentos da época, mas também para evitar que ele se misturasse demais aos moleques do engenho e às “safadezas das neguinhas que viviam soltas pelo terreiro”. A gente ainda se sente agredida, irritada, indignada, mas a declaração também está dentro do previsto.
São oferecidos mais detalhes sobre a vida do protagonista, imagens do engenho em atividade, a feitura do melado e da rapadura, uma trilha sonora bonita e convincente e o caso nebuloso e pouco comentado do acidente com arma de fogo, no qual o menino Zé Lins matara um menino do engenho, companheiro de brincadeiras.
No depoimento dos amigos literatos, como Ariano Suassuna, fica-se sabendo que Zé Lins não comentava o fato e nem o próprio Ariano o sabia. Do testemunho familiar depreende-se que nem mesmo os avós, presentes à casa no momento do tiro, souberam do acontecimento, e boa parte da família também não, tamanha a necessidade de proteger o menino Zé Lins, que provavelmente já se martirizava demais com a lembrança. Mas só deve ter sido possível tanto segredo e ausência de comentário em torno daquela morte por tratar-se do desaparecimento de um menino do engenho, mais um, como um passarinho. Fosse um filho de coronel e por mais zelo e humanidade que a ocultação do fato representasse, não se faria possível. Quem tem sobrenome deixa o nome na lápide e tem lugar na história.
O ponto alto do documentário, ou pelo menos o que mais me interessou, são as falas de alguns contemporâneos ou admiradores de Zé Lins, principalmente Carlos Heitor Cony, Ariano Suassuna e Thiago de Mello. Cony é o mais cerebral dos três e é bastante ácido na análise das pretensões de Gilberto Freyre a um suposto forjamento do escritor José Lins do Rêgo. Parece que, soberbamente, Freyre se valia da admiração profunda que Zé Lins nutria por ele, para julgar-se seu criador. Suassuna, ética e cuidadosamente nordestino, não critica Freyre abertamente, mas declara que este não era um romancista, ou se o foi, não passou de um escritor de menor monta, principalmente se comparado a Zé Lins. Vai mais longe, critica o cientista Freyre, faz um comentário duro e preciso sobre a obra Casa Grande e Senzala: “o negro de Freyre é o negro da casa grande, doméstico e domesticado. Ele não chega ao negro da fazenda, do eito e ainda menos do quilombo”. Foi Ariano quem disse.
Thiago de Mello é o mais sanguíneo, visceral, dentre os amigos a depor. Fora também o mais próximo, aquele que acompanhou Zé Lins até as últimas horas de vida. Cuidara das feridas, coceiras e excrementos de doente vitimado por falência hepática, em decorrência de esquitossomoses sobrepostas, contraídas na infância, nos caracóis do rio Parnaíba. É poeta, cria mais beleza que personagens. Além de compor música para alegrar os últimos dias de Zé Lins.
O depoimento de Thiago de Mello é das coisas mais humanas e comoventes que já tive a graça de ouvir, tem aqueles silêncios longos de quem, sem sair do corpo se conecta com outros mundos. E é preciso ouvir e ver, não é possível reproduzir, pois, por mais fidelidade ao texto que conseguisse, faltariam a voz, a emoção, os gestos, o olhar de “De Mello”, como o chamava Zé Lins. Sua entonação é maior que o drama, que a performance, é um ato supremo de representação da dor de perder um amigo amado, da solidariedade de uma amizade sincera e desinteressada, da resignação frente aos limites e à indesejada falência do corpo físico.
Se a mim fosse dado rebatizar o filme, eu o chamaria de “Thiago de Mello, o amigo de José Lins do Rêgo”. (Fotos recentes de Thiago de Mello, aos 80 e aos 78 anos)
Comentários
Obrigada por nos "brieffar" para o filme. o teu olhar é prenhe de emoção e sensibilidade. Sabendo que o teu relato comovido é uma análise inteligente, não tem como não assisti-lo.
Rosane