Cidinha da Silva comenta a crítica de Ricardo Riso a Oh, margem! Reinventa os rios!
Por Cidinha da Silva
É bom começar o ano recebendo uma crítica consistente ao
nosso trabalho. Pouco importa se gosto ou desgosto, concordo ou não. O
fundamental é que haja argumentos, leitura atenta da obra, desvelamento de
mistérios.
Uma incursão desta revolve a
terra quando o crítico afirma: “O texto de
Cidinha atinge o cânone literário, é transnegressor no sentido de buscar uma dicção
própria dentro da literatura negro-brasileira, ao procurar tratar as tensões
raciais com sutileza, conseguida em vários momentos”. Quando não terá
conseguido? Onde morreu na praia? Só afirmações dignas de crédito levam autoras
e autores a perguntas desestabilizadoras.
Causou-me
surpresa o terceiro eixo do Margem, criado pelo crítico: “incursão de negras e
negros na universidade”. A estranheza se deu porque compreendo um eixo de uma
obra literária como um conector-articulador, algo que amealha convergências.
Nesse sentido, a escolha de tal eixo em Oh, margem! Reinventa os rios! é política,
mais do que qualquer outra coisa, em detrimento, inclusive, de um esperável
eixo de gênero, gênero e sexualidade ou talvez um terceiro, tão importante
quanto, de frugalidades. Mas, trata-se de uma leitura legítima e válida, uma
interpretação a partir dos valores e concepções de quem lê a obra, acima de
qualquer concepção da autora. E que ela motive outras leitoras e leitores, como
vem acontecendo.
É curioso como
as diferentes leituras subvertem uma crônica. Para a autora, a universidade é o
cenário para desenvolver a história “Solidariedade”, apenas isso. Está distante
de ocupar o foco central, representado por conflitos de gênero, intra-gênero,
vividos por duas mulheres negras em espaço universitário tenso, também pelos
aspectos ressaltados pelo crítico (ausência ou presença subalternizada de
negros nas universidades brasileiras e/ou presença que incomoda), mas,
principalmente, porque o homem negro, objeto do desejo das duas mulheres em
tela, “trocou uma pela outra” porque, uma vez mestrando, julga-se objeto de
maior valor no mercado afetivo. Escolhe, então, para parceira, uma mestranda,
que tem tanto valor social quanto ele. Este conflito intra-racial, um pouquinho
mais complexo do que o significado político da presença negra na universidade é
que mereceu luz forte no caminho narrativo escolhido pela autora. A universidade,
ali, é um cenário, como outro qualquer e, como tal, mereceu atenção para
caracterizá-lo subjetivamente, para além de descrevê-lo como espaço físico
determinado.
Entretanto, o
crítico, em leitura político-racial da crônica, destaca aquilo que julga mais
importante e que dialoga com seus próprios interesses e saberes. E isso é a
realização da literatura, não? O novo que nasce da leitura que se faz da
escrita.
Dentre o que
gostei (quase tudo), embora isso não seja o mais relevante, o importante é a
consistência da crítica, destaco os comentários de Ricardo sobre as cinco
crônicas que compõem o bloco “Colônia Africana em Porto Alegre”. Este conjunto textual efetiva a idéia de
Diáspora africana, da liberdade que a autora mineira confere a si mesma para
abordar a vida e os modos de viver de negros gaúchos, do desafio para encontrar a própria voz narrativa em meio a depoimentos e fotografias.
As
crônicas “Carnaval”, “Os bailes”, “As lavadeiras”, “A benzedeira” e “Povo de
santo” foram encomendadas para o livro Colonos
e Quilombolas, de 2010 (edição de Irene Santos e outras autoras). Este tem como
tema geral, o desbravamento de um território que se iniciava na atual Cidade
Baixa da capital gaúcha e passava pelos bairros Bom Fim, Mont’Serrat e Rio
Branco, estendendo-se ao Três Figueiras, onde ainda subsiste o Quilombo dos
Silva, reconhecido pelo Governo Federal, mas, diuturnamente contestado pela
vizinhança, como é regra no tratamento dado aos quilombos, urbanos e rurais, em
todo o país. Apesar de ter suas ruas inscritas nos mapas do século XIX, a
região, popularmente conhecida como Colônia Africana, nunca foi oficializada
pela Prefeitura como um bairro da cidade. Os depoimentos e as fotografias da
publicação contam uma história de resistência e reinvenção da vida na busca da
humanidade plena, roubada pelo racismo. Os moradores da Colônia Africana
alertam, por exemplo, que os porto-alegrenses gostam de pensar que os judeus
foram os primeiros habitantes do bairro Bom Fim. Não foram não. Os negros
chegaram antes, bem no início do século XX. Aos poucos foram imprimindo suas
marcas nas festas populares e de origem religiosa que envolviam os imigrantes
europeus, também moradores do bairro. A região era povoada por homens e
mulheres negros qualificados para diferentes ofícios: trabalhadores/as
domésticos/as, tais como jardineiros, cozinheiras e damas de companhia;
acendedores de lampião, roçadores de terrenos, lavadeiras, benzedeiras,
condutores de carros e bondes, costureiras e músicos, dentre os predominantes. A autora procurou trazer essa ambiência para
os textos.
As crônicas
escritas para Colonos e Quilombolas não tiveram tempo para a revisão merecida,
dada a premência da publicação e a entrada tardia de Cidinha da Silva no
projeto. Republicá-las em Oh, Margem, entretanto, possibilitou a revisão
criteriosa.
Tenho fortes
restrições à crítica literária destinada às autoras e aos autores negros,
produtores de literatura negra no Brasil, pelos seguintes motivos: por um lado verifica-se a abordagem canônica que despreza
este fazer como genuinamente literário, enquadrando-os na categoria de relato
de vida, depoimento pessoal, auto-biografia lacrimosa, textos menores, enfim. É
uma crítica que não escrutina a obra, restringe-se a abordá-la de maneira
superficial, insuficiente. De um modo geral, concentra-se mais na biografia
“sofrida” e na legitimidade que pessoas com o perfil social de “guerreiros-escritores-negros”
têm para escrever.
Por
outro, entre os críticos negros e outros orientados por uma visão convulsiva dos
ditames canônicos desenvolveram-se cacoetes, a saber: uma ênfase (positiva) à
biografia da autora ou autor negro, principalmente àqueles aspectos que a/o
vinculam ao ativismo político de combate ao racismo; uma postura condescendente
em relação aos problemas de descontinuidade de texto, inconsistência literária
e personagens frouxos que muitas de nossas obras apresentam; uma preocupação
mais detida com a temática que, sob esse ângulo de visão, deve
(preferencialmente) circunscrever-se ao combate ao racismo e a uma afirmação de
africanidade vinculada à compreensão expressa pelo Movimento Negro, em
detrimento de uma atenção à ética/estética do texto, dentre outras questões. Ou
seja, tem sido uma crítica que confunde o apoio e respeito a autoras e autores
negros, bem como o enfrentamento dos preconceitos canônicos, com certa
benevolência em relação à obra da autora ou do autor negro, que, em última
instância, os diminui como produtores de arte e os guetiza novamente. Desta
feita, um gueto proposto pelos de dentro.
Há
ainda os limites de muitos críticos, presos aos clichês interpretativos por
falta de envergadura e repertório para fazer os vôos mais complexos exigidos
por determinados textos. Bom exemplo disso é a crítica absolutamente rasteira e
insatisfatória feita às dimensões raciais da obra de Paulo Lins, Ricardo Aleixo
e Elisa Lucinda.
Este
tipo de crítica não "ajuda quem escreve a desvendar os próprios processos
de criação", para parafrasear o nonagenário André Carneiro, um dos
pioneiros na criação da literatura de ficção científica no Brasil. A crítica de
Ricardo Riso a Oh, margem! Reinventa os rios!, por sua vez, tem fundamentação
ética e estética, não chafurda no opinativo "gosto ou não gosto e por isso
o trabalho é bom ou ruim".
Em
tempo, Cidinha da Silva aborda homossexualidade/lesbianidade em algumas
crônicas do livro, faz oposição frontal à heteronormatividade ao longo da obra,
e, nem por um momento, sequer, utiliza o insepulto “homossexualismo feminino e
masculino”, seja como conceito de garras pegajosas, seja como semântica vazia
de significado político para representar a gente LGBT.
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