O amor da novela
Por Cidinha da Silva
Passei uns dias em festa, outros
dormindo com as galinhas e acordando com o alarido das saracuras e deixei de
assistir a vários capítulos de Lado a lado. Não tinha televisão, a internet
oscilava e havia um único modem, além
de um tablet de bateria preguiçosa
para quatro pessoas, portanto, a mim, em férias, restou a utilização básica e
essencial da máquina, enquanto outros trabalhavam.
Quando voltei à telinha, depois
de ler o resumo do suposto capítulo do dia, esperava que Isabel e Zé Maria
finalmente superassem os obstáculos e passassem à próxima etapa do amor, a construção
da vida juntos, mas isso só viria uns quatro ou cinco capítulos depois. Entretanto,
me deleitei com a poesia do encontro de Isabel e Zé Maria. Ela pegava o
açucareiro para adoçar o próprio café, e Zé, o cavalheiro, argumenta que não
tinha tostão para pagar a bebida de ambos, mas gostaria de, pelo menos, passar
o açucareiro (metáfora do doce da vida) às mãos da amada. Ela aceita e pede
desculpas, é que está se acostumando a ser sozinha. O açúcar a desperta e
Isabel diz ao amado: Zé, eu não quero me acostumar, não. E ele vai embora, corre
para fugir ao constrangimento de não poder pagar o café, mas ao mesmo tempo move-se
em direção ao trabalho que lhe dará dignidade e recursos (exigidos por ele
mesmo) para interromper a solidão de Isabel.
Vi a cena e pensava naquilo que
nos move nas novelas, no quanto aquele casal realiza nossos amores frustrados,
inalcançáveis, platônicos, surreais. O amor da novela renova a esperança de que
o nosso amor seja possível, de que o sexo com o marido não seja mais uma obrigação
doméstica no fechamento do dia.
O amor da novela nos permite o
sonho do beijo-acalanto, bálsamo depois do insulto do patrão, do transporte
enguiçado na chuva, do aperto no trem, do corpo esburacado estendido pelo
caminho, do jornal da noite que detalha as mortes individuais violentas e
chacinas da noite anterior.
O beijo da novela nos restitui a
humanidade, a dignidade, o desejo. Não é ópio, é sonho de padaria, o doce que
se pode comprar clicando o power da
TV.
Comentários