"Assim canta meu galo"
(Por: Elisa Lucinda). Daquele natal lá de casa da minha infância,/
guardo o batimento cardíaco daquela véspera./
A surpresa dos presentes sobre os sapatinhos,/
o cheiro de plástico novo que vinha da carne cheirosa e macia das bonecas novas,/
a alegria dos meus irmãos,/
guardo o meu pai pintando a casa nas anti-vésperas/
que moram nos começos de dezembro,/
guardo o peru gostoso com farofa/
e todo o teatro da tragédia que antecedia sua morte para a nossa ceia./
(Sou da horda dos humanos que comemoram assim essa passagem),/
por isso vos falo:/
Guardo a certeza do vestido novo/
e uma música que castigava muito meu coração,/
a ponto de eu chorar, como até hoje o faz:/
“Eu pensei que todo o mundo fosse filho de Papai Noel.../
Papai Noel, vê se você tem a felicidade pra você me dá?”/
Abria logo meu brinquedo de chorar./
Essa música toca na praça pública da infância, da minha vida,/
num alto falante que até hoje me leva a ponto de soluçar./
Sei lá./
Parecia que nessa hora o mundo todo ficava pensando que era bom./
E o mundo ficava mesmo bom./
Parece, até hoje!/
Mesmo sabendo que se aproveita do sonho de ser bom,/
de fazer o bem, de caprichar considerando a existência do outro,/
se aproveita disso para se fazer comercial./
A cegueira do dinheiro./
A cegueira mais banal./
Enfraquece o movimento./
Meu sentimento é de que muitos, muitos natais moram em mim./
Penso que foi uma aula de esperança que eu recebi./
Como na minha infância ser pobre não era ser miserável,/
no Brasil capixaba que me cabia,/
eu pensava que quando ouvia aquela canção/
”Eu pensei que todo o mundo fosse filho de Papai Noel”,/
me fazia crer que ele era uma espécie de Deus da justiça/
e certamente daria brinquedos para as crianças pobres também./
E era verdade./
Nas casas pobres da minha cidade,/
também tinha o retrato da alegria no quintal ou no terreiro em frente a casa./
Eu via meninos e meninas pobrezinhos,/
com a renda bem distribuidinha em forma de brinquedos mais simples,/
mais baratinhos e por isso mesmo,/
mais brinquedo assim./
Natal pode ser aula de solidariedade da vida então!/
Que coraçãozinho de criança iria acreditar que não?/
Quem que iria supor que a injustiça golpeasse ainda tanto?/
Posto isto, fora as severas palmadas de minha avó,/
poucas vezes me encontrei com a tristeza quando eu era criança./
Poucas vezes me encontrei com um pouco da estupidez/
que minha ingenuidade sabia sobre o mundo/
e um pouco da brutalidade desse mesmo mundo./
Achava que existia algum horror,/
mas nunca a ponto do mal poder vencer a batalha./
Por isso cresci fabricante de sonho e querendo aprender a produzir a paz./
(Sou da horda dos humanos que acha que pode mudar o jogo)./
Como sou errante,/
guardo essa sensação reluzente/
de pisca-pisca na árvore agradando a memória./
Guardo essa glória - o bordado em ponto-cheio e ponto- atrás,/
tramado ao jardim da toalha./
Dessa data guardo esse desejo de alegria,/
de agasalho, de fartura em todas as mesas do mundo./
E guardo essa madrugada para o dia principal, ardendo no meu peito!/
E é desse jeito./
Ainda dá pra salvar o mundo./
Todo o homem, em qualquer tempo, pode estar a ponto de renascer!/
Tudo pode ser sonhado antes de acontecer./
Já passa de 2000, quase 2010, você não vê?/
Canta, meu galo, canta,/
palavras existem para esclarecer!/
Agora, dentro do batimento cardíaco desta véspera,/
mas na madrugada daquela hora,/
vontade me dá que se receitasse versos para o mundo tomar,/
o mundo é um menino que nos escreve uma carta,/
pedindo para a gente dele cuidar./
Ainda hoje, quando faço isso que acabo de escrever,/
me sinto eu papel Noel sobre o telhado,/
portando esse poema para você e tendo que chegar com ele vivo às tuas mãos,/
antes do amanhecer.
(Elisa Lucinda.
Natal de 2008).
Comentários
abração!!!!