Entrevista para a professora Luana

Luana: Cada Tridente foi publicado em 2006 após uma trajetória bem sucedida de artigos publicados em livros organizados por outros autores, ou por você mesma como é o caso do Ações Afirmativas em Educação. Hoje temos uma nova trajetória, também de sucesso, mas em textos de prosa. Como se deu essa transição? Cidinha: De maneira suave, sem traumas, embora leitores/as mais atentos/as possam verificar ansiedade e insegurança em alguns textos do Tridente, 1a edição. São textos nos quais a prosadora briga com a ativista e sucumbe à esta, mais forte e experiente. Na 2a edição do Tridente, a prosadora se impõe ao cortar oito textos, dentre eles, um muito ruim, péssimo, “Mais um dia dos pais e um homem negro sem camisa” e ao acrescentar três outros que arredondaram a obra e constituíram um resultado final muito bom. Ainda assim, tenho insatisfações nos dois livros publicados, Tridente (1a e 2a edições) e Tambor, pois ainda me percebo muito ativista, digamos que ainda estou em transição para o ARTIVISMO. Isso ocorre porque passei a maior parte da minha vida adulta envolvida em processos de ativismo político e porque a política continua sendo fundamental, embora a arte, a cada dia, ocupe mais espaço em minha vida. Veja bem, não tenho paixão pela política, nunca tive, nem quando a exercia profissionalmente, acho-a essencial para transformar a realidade, para prover as condições para que a arte flua e me emocione, me impulsione a ser humanamente melhor. O imperativo da política na vida cotidiana, para transformá-la, às vezes ainda gera armadilhas eficientes que emboscam a literariedade que busco em meus textos. Não há como abandonar a política, tampouco tenho a ilusão de que isto seja possível, mas imagino que as narrativas mais longas ajudem no meu processo de libertação e crescimento como escritora. Estou investindo nisso, em narrativas de maior fôlego que cada vez mais me aproximem da minha alma. Luana: Vejo em alguns textos da chamada literatura negra ou afro-descendente uma linguagem ácida, feroz. Ainda que você não classifique sua produção literária como negra ou afro-descendente (me refiro àquela pergunta que lhe fiz há um tempo atrás), há traços dessa literatura nos seus textos, vejo em tudo que você escreve muita sutileza (o que torna os textos DELICIOSOS), o que a difere dos demais escritores. Gostaria que você falasse desse estilo, dessa forma de escrever. Cidinha: Em primeiro lugar, não me lembro exatamente do que disse, mas se você diz que eu disse, confio em você. Mas, como sou hoje uma pessoa diferente de ontem, deixe-me dizer o que penso agora. Não gosto do termo “literatura afro-descendente” e não me filio a ele. “Literatura afro-brasileira” também não me deixa totalmente à vontade e “literatura negra” é o que mais me apraz. Há um debate conceitual intenso entre escritoras e escritores negros que se postam em cada uma dessas correntes teóricas e não me deterei nisso, aguardo a obra que meu poeta e teórico predileto, Edimilson de Almeida Pereira, está preparando sobre o tema. Hoje, me defino como uma mulher negra que escreve, ou seja, faço literatura e serei sempre uma mulher negra a fazê-lo. Explicitando ainda mais o que penso, minha tessitura literária é impregnada pelo que sou e, dentre outros pertencimentos e identidades, sou uma mulher negra politizada, afirmada, etc. O pertencimento racial e identidade racial robusta e consistente são essenciais em minha vida, mas isso não me traz a necessidade de produzir uma literatura essencializada e, se o faço, admito que ainda o faça, é por não dominar o uso da palavra como desejo (“lutar com palavras é a luta mais vã”). Sou negra, isto posto, intento produzir uma manufatura (ops, literatura) em que as pessoas negras possam também se reconhecer, sem que para isso eu tenha de produzir um discurso direto e, em muitos casos, sem literariedade. Quero criar, poetar, dramatizar a partir de temáticas caras a mim, e a temática racial é uma delas. E, mais uma vez, insisto, sempre serei uma mulher negra a fazê-lo, seja qual for o tema que aborde. Recentemente, uma pesquisadora de literatura negra de Belo Horizonte, Zélia Neves Vaz, localizou similaridades entre minha tessitura literária e a de três autores que muito admiro, a saber: meu mestre, Edimilson de Almeida Pereira, Salgado Maranhão e Ronald Augusto. Não sei qual seria ou será a reação deles, se acharão justo o emparelhamento, de minha parte, fiquei exultante e honrada, pois, tenho mesmo como proposta literária, não fazer do texto um instrumento de militância política. Já o fiz, de maneira lúcida, conseqüente e transformadora nos textos que produzi e publiquei de 1992 a 2006 e em artigos e ensaios não-literários que escrevo, eventualmente. Há muitos anos, numa roda ao pé do meu baobá interior, ouvi de Rique Aleixo ou Edimilson, uma expressão do escritor nigeriano Wole Soyinca, livremente traduzida assim: “um tigre não anuncia sua tigritude, ele ataca”. Eu quero ser tigre, a tigra do Salgado, a tigrela da Lygia, a tigrona, quem sabe, das funkeiras cariocas. Busco fazer com que a força da palavra e a inventividade em seu uso me constituam como prosadora, ao invés de usar minha negritude, minha negrura, meu pertencimento racial feliz e guerreiro para legitimar minha literatura. Luana: E o processo de criação? Há tempo, hora ou lugar? Cidinha: Sim e não. Adélia Prado diz que é impossível descrever o processo criativo. Do alto de minha imaturidade, longe de alcançar a sabedoria dela, ouso descrever o meu processo criativo, pelo menos aquilo que consigo perceber dele. Eu observo todo o tempo, rumino, desde a concepção da capa de um livro, às pessoas que convidarei para escrever o prefácio, a orelha, a escolha da epígrafe... costumo estruturar o livro, como conceito (estética) e como objeto-livro e depois de ter isso definido, escrevo. No processo de escritura, anoto muita coisa em cadernos, às vezes desenvolvo parte do texto à mão, elenco temas, idéias, situações, histórias; anoto possíveis nomes de personagens, pesquiso o significado de alguns nomes, registro palavras e expressões cuja sonoridade me encanta, engana ou intriga. Ouço muita música, reiteradamente algumas cuja poesia eu gostaria de ter escrito e isso me ajuda bastante nos textos curtos. Leio bastante também, leio todos os dias, embora não consiga escrever (literatura) todos os dias porque boa parte do tempo é ocupada pelo trabalho, às vezes outras modalidades de escritura que garantem a sobrevivência material. Para escrever uma narrativa preciso de tempo mental, ou seja, preciso que minha cabeça esteja voltada para aquela produção e descansada também, fresca. O melhor horário para isso é pela manhã. Gosto de acordar cedo e escrever. O lugar em que melhor trabalho é minha casa, meu computador, com todas as anotações ao alcance das mãos e das teclas. Leio e reescrevo inúmeras vezes, consulto dicionários (de sinônimos e antônimos, de regimes de verbos, substantivos e temáticos) para me certificar de que o que penso dizer é mesmo o que estou dizendo. Tenho tentado (ainda é uma tentativa) deixar o texto descansar depois de julgá-lo pronto, como massa de pão ou bolo, para crescer. Antes disso, costumo lê-lo em voz alta, para mim mesma e para amigos/as ou em situações de palestras, cursos e rodas de conversa. É pela leitura oral que acerto o ritmo e a melodia dos textos. Conto também com a leitura crítica de pessoas variadas de livro para livro. Antes de entregar o livro a elas, costumo explicitar o conceito da obra, meus objetivos e pretensões ao escrever os textos - pois quero que elas avaliem se os alcancei ou não -, apresento algumas das dúvidas principais, por exemplo, se com a frase ou expressão X estou sendo piegas, se há um tom de comiseração em outras falas, se a personagem Y ou Z diria aquele texto. Sou muito receptiva às sugestões e críticas fundamentadas. Mesmo assim, muita coisa escapa, outro dia, numa passada d’olhos em um texto do Tambor, coisa informal, num bar, uma leitora de olhos finos e clarividência ímpar, arrasou o título escolhido, a capa do livro e o uso específico de uma palavra, a “transmutação”. Falo do texto “Porcina e Clara Claridade”. Num determinado momento, a personagem, uma travesti, narra o conselho dado à outra, para que não fizesse uma aplicação adicional de silicone no seios, a frase era: “dissemos que ela se transmutaria num chester”. Minha interlocutora me destruiu, disse que aquela personagem não usaria aquela expressão com a suposta naturalidade que emprestei a ela. No afã de me defender disse que eu a usaria, naturalmente. Ao que ela respondeu que sou muito chata, seria aceitável, mas eu não era a personagem, era a autora e aquela fala não cabia na boca daquela personagem, tampouco no contexto. Estava certa. Aconselhou-me a corrigir a bobagem na segunda edição. Está bem, pelo menos ela acha que haverá uma segunda edição. Luana: No livro do Giovanni Ricciardi - Biografia e Criação Literária – Vol. 3: Entrevistas com Escritores Mineiros, uma pergunta que o autor faz aos entrevistados é se escreveriam um obra por encomenda. A maioria respondeu que não. E você? Escreveria ou já escreveu um livro sob encomenda? Cidinha: Sim, escreveria, escrevo, estou escrevendo, já escrevi. Como disse, faço alguns trabalhos de escritura que são encomendados, como exemplo, produzi há pouco uma cartilha para a Coordenadoria do Negro da Prefeitura de São Paulo sobre racismo institucional, a partir de um seminário internacional sobre ações afirmativas que a instituição realizou em 2007. A construção do texto implicou em análise do material do seminário e pesquisa sobre práticas de combate ao racismo institucional adotadas por outras prefeituras de cidades brasileiras, tais como Recife e Salvador, com o apoio do DFID – Departamento Cultural do Consulado do Reino Unido. São trabalhos em que não tenho espaço para expressar minhas opiniões propriamente, mas tomo tudo como exercício de escritura, que contribui para o meu crescimento como escritora. No campo literário, especificamente, eu não poderia aceitar o cerceamento da minha criação, ou seja, que alguém me desse o roteiro fechado do que seria uma obra e mais, que interferisse nos rumos dela, de acordo com o roteiro pré-estabelecido. Este tipo de experiência nunca tive e acho que seria difícil realizá-la e ficar contente. Mas já tive outras, por exemplo, escrevi para um concurso de contos que tinha uma temática geral pré-estabelecida, não ganhei, mas criei uma de minhas melhores narrativas, “Pela mão de Benguela”. Estou trabalhando numa novela juvenil que foi encomendada, pois está sendo escrita a partir de um argumento que não é meu e de um conjunto de desenhos, ambos de Iléa Ferraz, artista plástica e parceira de vários trabalhos. Quando fiz os acertos com ela, uma coisa pré-definida foi que não haveria interferência no processo de escritura, eu não submeteria o texto em processo à avaliação dela e, provavelmente, o resultado final seria diferente do que ela sonhou – literalmente ela sonhou com o livro e sonhou comigo como realizadora dele. Foi fácil porque a conversa se desenvolveu com uma artista sensível e coerente que respeita o processo de criação da outra artista em questão. Feito o acordo, sinto-me livre para trabalhar. A encomenda me instiga como criadora, faz com que eu pesquise meus repertórios internos e busque informações e leituras nos mundos externos a mim para compor aquela história e, até por vício de formação, aprecio a pesquisa, dentro e fora de mim. (Imagem: Iléa Ferraz).

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