Travessia – a vida de Milton Nascimento




Por Cidinha da Silva

Faltavam seis páginas para terminar as 390 de leitura intensa da biografia do Milton, feita em todos os momentos possíveis e a abandonei. Não queria que o livro terminasse. Há muito um texto não me arrebatava assim. A autora, Maria Dolores, uma jovem jornalista de Três Pontas faz jus à orelha do livro e constrói a biografia como quem escreve um romance. 
Eu me envolvi tanto com o enredo que no capítulo sobre a descoberta do diabetes tipo II do Milton, me penitenciei por tê-lo abandonado, por não ter estado junto dele. As biografias bem escritas nos apresentam nossos ídolos em humanidade plena e a gente passa a compreendê-los melhor. Por exemplo, no caso do Milton, que gosta de ser chamado de Bituca, pude entender um pouco sua constituição como homem negro, os conflitos raciais, a segregação racial vivida na Três Pontas de sua infância e adolescência. Mesmo sendo aquele que escreveu o discurso de formatura da turma de 8a série não pôde participar do baile no clube racista da cidade. Lá não entravam negros. Não podia também assistir ali as apresentações de orquestras e bandas que passavam por "Trespa" (apelido dado à cidade). Ficava sentado no banco da praça, ouvindo pelas frestas das janelas e os amigos brancos entravam, observavam e corriam à praça para  contar-lhe como eram os instrumentos, os músicos, o clima da apresentação. 
Criado por uma família branca de classe média, depois da morte prematura da mãe biológica, sentia-se discriminado pelas famílias negras pobres que não o aceitavam por ter uma família branca. Não esqueçamos que todas essas famílias moravam numa cidade do interior mineiro, na qual havia lugares estabelecidos para os negros. Milton saía da norma e os negros locais provavelmente não sabiam como lidar com isso. 
A vida de Milton Nascimento é fascinante, principalmente sua relação espiritual com a música. Há um capítulo para cada um dos discos confeccionados ao longo de mais de 40 anos de carreira. Em todos eles a presença dos amigos, fundamentais para o cantor. Aliás, o livro é uma louvação às relações de amizade. 
Só lamentei não ter conseguido saber ao fim da leitura, se Milton reconstruiu a relação afetiva com Pablo, filho único, ao qual a ditadura exigiu abandono total (Pablo morava em São Paulo e Milton no Rio) sob pena de “dar um sumiço” no garoto, caso não cumprisse as ordens à risca ou fizesse comentários sobre elas.

O livro é pura poesia, em vários momentos, doída. É preciso ler para ver e sentir.

Em tempo: em 06/06/2007, quando da primeira postagem desse comentário sobre a biografia de Milton, recebi a mensagem abaixo, escrita pela biógrafa: 
Cara Cidinha,
Desde que o Marcelino Freire falou do seu blog, eu entro nele de vez enquando. Não sempre, porque quase nunca tenho tempo para passear na internet, me divertir, geralmente só escrevendo trabalhos. Enfim, fiquei muito feliz ao ler o seu post sobre meu livro (Travessia - a vida de MIlton Nascimento). Porque foi um trabalho longo, doloroso, divertido, uma paixão que surgiu de repente na minha vida: a história do Milton. Fico feliz e emocionada de saber que consegui passar de alguma maneira essa história. Obrigada, foi muito gratificante ler seu post. Quanto à relação com Pablo, ele nunca conseguiu reatar, eu até falei com o Pablo, que não quis dar entrevista. É um tema doloroso e que parou onde parou, por isso eu também parei no livro, ñão levei adiante. Afinal a história do Milton é muito mais que isso, né, e eu não quis, propositalmente, insistir nessa questão, até hoje não resolvida. Enfim, um grande abraço e parabéns pelo seu blog, pelos seus textos.
Maria Dolores

Comentários

Allysson Garcia disse…
Fiquei curioso sobre Milton ser obrigado a se afastar do filho pela Ditadura.
E emocionado pelas suas palavras. É o segundo texto seu sobre Milton que leio tocando-me pela maneira com que você se relaciona com Milton e seus leitores.
Obrigado!

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