Centenário de Solano Trindade: "o pioneiro dos manos"

Ontem, domingão, fui para o III Encontro de Literatura Periférica de Francisco Morato,uma homenagem ao Centenário do Solano Trindade. Esperei o segundo trem na Estação da Luz para fugir da superlotação do primeiro. Uma criança de uns 10 meses chorava, urrava, e a mãe parecia alheia ao sofrimento. Não tinha mais do que dezoito anos aparentes, a mãe, e seu rosto integrava o quadro de alheamento do mundo da maioria dos passageiros. Foram muitas estações de choro e a mãe ali, distante, cansada e de olheiras fundas como quase todos. Por fim, a criança dormiu, vencida pelo cansaço, provavelmente maior do que o frio e a fome, àquela altura. Lembro-me que na minha primeira viagem a São Paulo, no inverno duro de 1988, duas coisas me chocavam, o quanto as pessoas fumavam e o quanto os pobres sentiam frio. Desprovidas de agasalhos apropriados aos seis graus daqueles dias, as pessoas vestiam camadas e mais camadas de roupas finas e surradas, no afã de formar barreira que intimidasse o frio. O efeito psicológico deveria ser maior do que o prático. Depois de sessenta minutos ou quase, cheguei a Francisco Morato. O som do Rap ouvido ao longe, encontro o Tala, angolano boa gente e vamos conversando sobre o lugar de origem dele em Angola. Ele me ensina também uma ou outra palavra do kimbundo até chegarmos lá. Logo na chegada vejo o amigo Allan da Rosa e recebo um exemplar do seu "Zagaia", poesia de cordel, publicado pela Difusão Cultural do Livro. "Zagaia é o moleque rapaz que sai pelo mundo a girar se deparando com cantos, seres e perguntas antes nem imaginados. Passando por provas, amadurecendo, alimentando o espírito com chás amargos e frutos de casca grossa. Procurando e procurando algo escondido nos embaços do dia-a-dia, do noite-a-noite". Nem pudemos fazer um escambo - o Allan publica tanto que não acompanho o ritmo dele -, já havia trocado um Tambor por um "Morada", livro dele, de textos e fotografias sobre moradias populares e periféricas em São Paulo. Não houve outro jeito, senão de pronto, comprar o livro. Encontrei também o Rodrigo Círico que naquela noite lançava o seu "Te pego lá fora", relatos da própria vivência como professor de escola pública na periferia de São Paulo. Fizemos o escambo. A seguir levei um papo com o Marciano Ventura, menino doce e sonhador que conheci anarco-punk e hoje é um super articulador cultural na Cidade Tirandentes. Já ouviram falar da Tiradentes, não é? O maior conjunto habitacional da América Latina. Há uns meses eu havia ido lá pra participar de um sarau, seguido de generosa feijoada, que não experimentei porque não sou fã de suinos e já eram 23:00, dali até o centro de São Paulo são quase duas horas entre ônibus e metrô. Bem, o Marciano me deu informações fresquinhas sobre a publicação "NEGRAFIA", organizada por ele, com textos das pessoas que participaram do sarau da Tiradentes, como convidadas. Honrosamente sou uma delas. O livro homenageará o Centenário do Solano, será lançado em eventos de discussão da obra dele e capricharei em um ou dois contos inéditos para integrá-lo (tenho seis páginas para escrever). Como vocês podem notar, faltam mulheres nesse agito de produção literária na periferia de Sampa. Além da Dinha, da Elizandra e da Maria Tereza, urge que outras meninas apareçam e publiquem e penso que a Edições Toró e a novíssima editora periférica "Elo da Corrente" deveriam se empenhar mais na promoção de mulheres escritoras. De minha parte já me dispus a conversar com as meninas que começam a escrever, que escrevem e têm medo de mostrar os textos, que escrevem e querem escrever melhor, mas ainda não rolou. Depois encontrei Dona Raquel Trindade que, animadíssima, como sempre, mostrou-me um exemplar do "Tem gente com fome", poema mais famoso do Solano, numa versão ilustrada para crianças, noticiada há dias aqui no blogue. Ouvi várias histórias do "papai Solano", da sucessiva perseguição política sofrida por ele, das viagens pelo mundo com o Teatro Popular Brasileiro. Por fim, Dona Raquel mencionou um artigo e fui buscá-lo na Internet, chama-se "O pioneiro dos manos" e, embora o título seja mais instigante do que o texto (esperava mais), vale a pena lê-lo. Atentem para a data, a publicação é de 15 de setembro de 2001. De quebra, haverá lançamento de dois livros do mano-mor, dia 25 de junho, na Casa das Rosas, em São Paulo. Quem estiver pela cidade, não perca. ------------------------------------------------------------------------------------- (O pioneiro dos manos, Por: Xico Sá, na Folha de São Paulo de 15/09/01) "Há 40 anos, o pernambucano Francisco Solano Trindade, morto como indigente em 1974, no Rio, aos 65, cravava a saudação "mano", prefixo obrigatório de hoje entre rappers e jovens da periferia, na poesia negra brasileira pré-Racionais MC's. "Que foi que fizeste mano/ Pra assim tanto falar?", soltava a loa. "(...) Subi para o morro, / Fiz sambas bonitos, / Conquistei as mulatas/ Bonitas de lá..." Ao dedicar-se ao combate à intolerância, com uma obra que guarda as dores do panfleto, mas não esquece do lirismo devoto às mulheres, o poeta firmou-se, entre os militantes dos movimentos negros, como símbolo da resistência que se trava contra o "racismo cordial" do país. Nos últimos dois anos, o precursor dos rappers, que foi cineasta, pintor e teatrólogo, teve seus poemas relançados e o estilo do seu trabalho reproduzido por Organizações Não-Governamentais e centros culturais que prezam por sua memória. A poesia completa do autor foi relançada por uma pequena editora paulista, a Cantos e Prantos, no volume "Solano Trindade - O Poeta do Povo", organizado pela filha Raquel, artista plástica e coreógrafa. A edição reúne os livros "Poemas de uma Vida Simples" (1944), "Seis Tempos de Poesia" (58) e "Cantares do Meu Povo" (61, relançado pela editora Brasiliense no início dos anos 80). Na internet, vários sites destacam no momento a vida e a obra do poeta, como o Pernambuco de A/Z (www2.jc.com.br/pe-az/) e o Portal Afro (www.portalafro.com.br). "É o maior nome da poesia negra militante do Brasil, referência em todos os debates que se travam hoje, como a questão das cotas para negros nas universidades e o racismo que persiste", diz Inaldete Andrade, que organiza, para edição da Secretaria de Educação do Recife, uma coletânea dos poemas de Solano Trindade sobre Pernambuco. Com o seu Estado como fonte, o poeta recupera alegorias infantis e loas populares que lembram a lírica dos conterrâneos Manuel Bandeira e o coloquialismo de Ascenso Ferreira -autor de "Catimbó", celebrado, em 1927, por Mário de Andrade, como o dono de "um ritmo verdadeiramente novo" no modo de fazer verso livre depois da tertúlia modernista. Solano Trindade, tratado como "esse genial poeta" por Carlos Drummond de Andrade, juntava militância, lirismo e uma oratória que mais parecia um assobio. Um dos poemas mais populares de Solano Trindade é "Tem Gente com Fome" -"Trem sujo de Leopoldina/ correndo correndo/ parece dizer/ tem gente com fome/ tem gente com fome/ tem gente com fome". Musicado, seria uma faixa de um disco de 75 do grupo "Secos & Molhados". A censura do regime militar, todavia, cuidou em proibir a canção, gravada posteriormente, anos 80, por Ney Matogrosso, um dos integrantes do conjunto, já em carreira solo. Com o Teatro Popular Brasileiro (TPB), fundado pelo poeta em 1950, foi o primeiro a encenar, seis anos depois, "Orfeu da Conceição", de Vinicius de Moraes, que daria o filme homônimo do francês Marcel Camus. O grupo correu a Europa, participou de espetáculos a convite de Edith Piaf e da Commédie Française. Solano Trindade animou-se também com a dança, no comando da corporação Brasiliana, que teve igual destino de sucesso. Ao contrário do personagem de "Terra em Transe", de Glauber Rocha, que não aguenta a mistura de poesia e política em um homem só, o avô dos rappers não sabia separar uma coisa da outra. Nesse embalo, organizou, nos anos 30, as primeiras reuniões para discutir o racismo no Brasil no século passado, o 1º e 2º Congresso Afro-Brasileiro, realizados no Recife, que respirava o lançamento de "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, e em Salvador. O engajamento político do autor em uma organização criada para enfrentar o racismo, fato raro na época, teve início em 36, quando fundou, na companhia do pintor primitivista Barros Mulato e o do escritor Vicente Lima, a Frente Negra Pernambucana. O apego ao panfleto, no entanto, nunca impediu que sua poesia fosse admirada por gente do ramo, como o poeta e ensaísta Sérgio Milliet, Carlos Drummond de Andrade, o escritor e crítico literário Otto Maria Carpeaux, entre tantos outros do mesmo calibre. "Organizando bailados, editando revistas, promovendo espetáculos e conferências, incansável em sua atividade, poucos fizeram tanto quanto ele pelo ideal da valorização do negro", anotou Milliet, em 1961. O escritor Darcy Ribeiro, já nos anos 80, dizia que Solano Trindade foi um dos mais importantes nomes do século passado no trabalho de injetar pilha nova na auto-estima dos negros do Brasil. Aí está também a semelhança do poeta com a legião de "manos" do rap, que segue a mesma pegada, no país que teima em manter a mancha racista do atraso. Solano Trindade é, como ele mesmo cantava, "blues, swings, sambas, frevos, macumbas, jongos", ritmos de angústia e de protestos, para ferir os ouvidos".

Comentários

drika disse…
Cidinha...

Acabo de ler as matérias no seu blog.
Preciso do seu endereço para enviar os livros do Solano Trindade.
Obrigado pelas matérias.

Dora Vieira

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