Sete historias de negro

Antes de comentar o livro preciso contar como cheguei a ele. O autor é o professor Ubiratan Castro de Araújo, da UFBA, ex-presidente da Fundação Cultural Palmares. Um senhor contista. Eu havia lido um único conto dele, chamado “Visitante indesejado”, publicado em uma revista, na qual também publiquei, o “Dublê de Ogum”, creio. Pois bem, fiquei impressionadíssima com a narrativa do Bira, como carinhosamente o chamamos. Vejam um trecho: “Depois da reza, tias, parentas e vizinhas, se reuniam para o salutar exercício de resenha da vida alheia. Elas cortavam, costuravam e bordavam desventuras, fraquezas e malfeitos de amigos e inimigos. Só os presentes escapavam, enquanto aí estivessem. Para não serem entendidas, ou mesmo por pudor e superstição, usavam palavras e expressões estranhas ao nosso vocabulário. Ao invés de ‘botar chifre no marido’, elas falavam ‘serrar as canelas’. Por isso, todas as vezes que eu entrava na casa do vizinho, ficava olhando para as canelas dele, intrigado com a falta de cicatrizes. Dos frescos, dizia-se que eram ‘falsos ao corpo’. Os órgãos sexuais tinham nomes diferentes. O vaso feminino era conhecido como ‘a perseguida’ e o aparelho masculino completo era denominado de ‘berloques de São Brás’. (...) A assembléia do DIVA (Departamento de Investigação da Vida Alheia) ficava triste, quando o assunto era a visita de Bernardo à casa de um parente ou conhecido. __ Bernardo está na casa de fulano há três dias. Todas tremiam. Bernardo era o substitutivo da palavra que não se podia pronunciar: fome. Este era o grande terror de todas as famílias. Ela era epidêmica, como na crise de 1929. Ela era sazonal, no tempo do paradeiro, meses em que não se exportava cacau em Salvador. Ela era terrível em momentos de doença e morte nas famílias. Bernardo também andava mancomunado com os maus procedimentos. Maridos cachaceiros, que se desempregavam para cair na gandaia, deixavam a família aos cuidados de Bernardo. Homens mulheristas, espécies de mulherengos militantes, gastavam o dinheiro com as raparigas e não levavam pra casa senão seus próprios ‘berloques’. Nestes casos, algumas não se continham e saía o palavrão: __ Pica pura dá gastura”. Diga a verdade, tive ou não motivos para ficar inebriada pela narrativa do Bira? Daí que quando soube que ele havia publicado um livro, com outros prováveis contos deliciosos como este Visitante indesejado, peregrinei atrás do dito, tinha o título, nome completo do autor e editora, mas nunca vi coisa tão mal distribuída, impossível de encontrar. Sequer nas livrarias da Universidade que o publicou consegui comprá-lo, meus emissários-buscadores que o digam. Até que no 12 de junho de 2008 fui lançar o Tambor na Fundação Pedro Calmon, em Salvador, dirigida pelo Bira. Eis que o próprio faz a abertura da noite e, além de me chamar de cintilante (desculpem-me, mas fiquei prosa), me saúda com um conto maravilhoso, “Tinhorão”, que estará em seu próximo livro, a ser publicado no segundo semestre de 2008 (por outra editora, tranqüilizei-me). Trato logo de agradecer e como a noite era minha, peço um presente, um exemplar do “Sete histórias de negro”. Prontamente o Bira, gentileza em pessoa, providencia a raridade e me a dedica com um “gordo abraço”. Fiquei mais prosa ainda. Na quarta capa da obra ele assevera que: “emerge uma convicção desafiadora: cada negro letrado no Brasil tem a obrigação de sistematizar as suas próprias lembranças. A experiência de cada um é um trecho de realidade vivida, de muita valia para nós mesmos e para outros. Isso justifica a ousadia de trazer a público sete histórias transmitidas em um contexto de oralidade familiar. São histórias do ordinário, do quotidiano, de homens e de mulheres comuns, negros todos”. Falou o Mestre, bora escrever.

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