Eu sou neguinho

(Joel Zito Araújo*, no Irohin, www.irohin.org.br ) "O meu amigo Caetano, que no debate público é um provocador tão genial quanto na arte, também é, sem dúvidas, um atento observador da realidade racial brasileira desde jovem, quando Dona Canô gritava “meu filho corra, venha ver na TV aquele preto de que você tanto gosta!”. Ou quando se irritou ao ver jovens de esquerda chamando Clementina de Jesus de macaca no Teatro Paramount, em 1968. Ou quando não deixou o país esquecer que o Haiti é também aqui. Mas agora, depois de tão bela história, depois de ter produzido poemas tão poderosos e belos sobre a negritude baiana, ele parece acreditar que o país acompanhou a sua cabeça e seu desejo de viver em uma democracia pós-racial. O Brasil pós-racial é uma meta que compartilho, mas ainda é uma ficção. O dramaturgo Harold Pinter já disse que, na exploração da realidade por meio da arte, "não há distinções explícitas entre o que é real e o que é irreal, tampouco entre o que é verdadeiro e o que é falso.”. Mas que diferenciar essas condições é fundamental para o exercício da cidadania. É necessário dizer para o querido Caetano que não é coerente ter feito uma obra tão magnífica e assinar um manifesto contra cotas para jovens negros pobres na universidade. E assim, mesmo agradecido pelo que ele fez, tenho que, atendendo a sua provocação (ver coluna de Jorge Moreno de 07/06/08), vir aqui dizer que a “realidade lá fora” continua brutal para aqueles que são “negros ou quase-negros de tão pobres”. Eles continuam com suas chances de ascensão social condicionadas à cor de suas peles em estruturas seculares que reproduzem o racismo nos bancos escolares, na nossa TV, no sistema de saúde, no mercado de trabalho, na violência policial... Não é possível ignorar as cotas como um movimento natural e necessário, apesar das imperfeições no processo. Diante da revolta contra sua condição de grupos populacionais excluídos, negros e indíos lutam por uma reparação histórica, lutam por seus direitos. Hoje, por trás da emergência identitária destes grupos está a busca pelo reconhecimento dos direitos de partilha das riquezas materiais do país (partilha do direito à educação, à terra, à liberdade religiosa). Vivemos, finalmente, numa sociedade em que os “excluídos” lutam autonomamente no campo da democracia pelos seus direitos. São lutas de idéias, de conquista da opinião pública e de leis. E isso é muito bom, e deve ser respeitado e incentivado. E, veja bem, eles não estão esperando o socialismo, ou a vitória do universalismo francês, ou o triunfo do mercado, para ter acesso à educação. Eles querem acelerar processos, cobrar dívidas históricas. Evitar tensões raciais é promover o reconhecimento dos seus direitos , e incentivar a sua luta política nas formas democráticas e republicanas. E tenho certeza de que o nosso querido Caetano sabe que Mangabeira Unger tá certo. Nós precisamos de uma segunda abolição. Mas como realizá-la sem nos defrontarmos com a questão racial? E por que acreditar que revalorizar neste momento a criação colonial do mulato é um passo para a sociedade pós-racial? Onde é que o mulato é celebrado como ideal da nação? Nas artes, na telenovela, no cinema, na publicidade? O ideal do país desde os tempos da escravidão foi, e continua profundamente internalizado em todos nós, fazer do negro um mestiço e do mestiço um branco. Nossas crianças perdem a auto-estima ao aprender a sonhar em ser, mesmo que cirurgicamente, iguais à rainha dos baixinhos. Por que todas as apresentadoras dos programas infantis foram inspirados no modelo ariano? Que ideal de raça estava por trás disso? Por que os considerados mais belos das revistas de moda, de TV e até mesmo de esportes são invariavelmente os mais germânicos? Por que somente em 2004 tivemos a Taís Araújo como protagonista de uma telenovela na rede líder de audiência? E quando voltaremos a revê-la assim? Ser mestiço, portanto, é ainda um momento de passagem da condição inferior para a raça superior. O mulato na telenovela ainda é, como regra, representação do estereótipo do bundão, do mau caráter, do bandido ou do ressentido. É por isso que não sou mulato. Só aceito o mulato como profissão. E é assim que vivem centenas de brasileiras afro-descendentes pobres que viajam pelo mundo vendendo a beleza dos seus corpos e dos seus movimentos em shows tipo sargentelli. Sou brasileiro, com ascendência afro-índígena-portuguesa. Mas neste momento histórico só me interessa afirmar o que fui pressionado a negar. O país ainda precisa de um choque de negritude e de indigeneidade. Para chegar a ser pós-racial precisa antes ser multirracial. Precisamos reconhecer que nossa nação é um mosaico, onde vivem filhos de africanos, de japoneses, de libaneses e de europeus, além dos indígenas. Somente assim poderemos, no futuro, realizar o mito que tanto prezamos, e vir a ser um exemplo de democracia racial. Neste momento sou orgulhosamente o meu avô e bisavô, eu sou neguinho. E amanhã posso vir a ser a minha avó, nambiquara ou pataxó. Diante da herança colonial que criou um sistema hierárquico de castas raciais, eu sou neguinho. Diante dos articulistas dos jornais que dizem que não somos racistas, mas alertam que se me assumo como negro sou ameaça de guerra civil, eu sou neguinho. Diante do senador que elogia o seu par mulato por estar apurando a raça ao se casar com uma “linda gaúcha dos olhos azuis”, eu sou neguinho. Ou diante da mídia que em suas imagens insiste em reafirmar a branquitude como ideal da nação, eu sou aquele Caetano que tanto admiro, e não aquele inexplicável mulato anticotas. Sou negro preto do Curuzu. Sou beleza pura". *Cineasta (“Filhas do Vento” e “A Negação do Brasil”).

Comentários

Unknown disse…
muito pertinente.
abç

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