Gabriela e os negros na Bahia global



Por Cidinha da Silva

Tenho acompanhado a maioria dos capítulos de Gabriela e me delicio com atrizes e atores excelentes e bem dirigidos naquela inverossímil Bahía cacaueira. Juliana Paes, ótima atriz, de perceptível ascendência negra, encena uma Gabriela complexa, muito mais do que libidinosa.

Gosto do folhetim, mas tenho consciência de que o assisto na Globo e sei que lá, a não ser que os ventos mudem muito, é impossível ter Cris Vianna no papel de Gabriela.

Cris Vianna, atriz competente, versátil, bela e sensual (atributos exigidos para interpretar a consagrada personagem), não tem vez porque, mais do que ser negra, afirma sê-lo. Dormisse a musa no sambinha das mulatas, não seria Gabriela, mas teria vida mais fácil, reconhecimento quase instantâneo no país da democracia racial.

Sofri demais com os perigos do romance de Sinhazinha e Osmundo. Quando ia se aproximando o dia do coronel Jesuíno descobrir o amor do casal de olhos azuis, pensei seriamente em não ligar mais a TV. Era certo que, no desfecho do caso, a Globo seria verossímil. Não caberia outro destino para o triângulo conflituoso naquela época além do assassinato do casal de amantes, para lavar, com sangue, a honra do chifrudo e punir a todas nós.

Eu temia ver a cena inexorável e me iludi o quanto pude. Quando um amigo me disse que o romance do casal não existia no livro, me animei. Quem sabe o revólver de Jesuíno não negaria fogo na hora do tiro? Isso daria a Osmundo tempo suficiente para lançar-se sobre ele, e os dois rolariam no chão e Sinhazinha desesperada, recostada no espaldar da cama, abraçada a um travesseiro que lhe protegeria os seios, soluçaria: “Osmundo, meu amor, cuidado!” Jesuíno se inflamaria de ódio porque sua mulher chamara o amante de amor nas suas fuças e lutaria com mais vigor. Osmundo, entretanto, guerreiro potencializado pela devoção à Sinhazinha, desarmaria Jesuíno.  Sinhazinha, nua e de meias-liga pretas, intactas depois do sexo manso com Osmundo, pegaria o revólver (que dessa vez funcionaria) e  trêmula atiraria em Jesuíno. O coronel estrebucharia nas mãos do herói-dentista. Então, Sinhazinha teria aquela crise de consciência indispensável: “oh, meu Deus! Osmundo, meu amor, agora sou uma assassina.” E Osmundo a tranquilizaria: “não, não, meu amor, você agiu em nossa defesa e me salvou! Vista-se, meu amor, vamos para a estação de trem! Venha!” E os dois fugiriam para os braços da felicidade.

Passado o devaneio de quem adora se meter no roteiro alheio noto que as mulheres negras, de algum destaque na trama, aparecem de maneira tão esdrúxula que chega a ser engraçada. A primeira que reparei, mãe da jovem que Berto tenta seduzir na fazenda do coronel Melk, oferece uma mensagem politicamente correta e pseudo revolucionária (do status quo da negra naquela sociedade pós-escravidão) muito mal construída. A mulher, interpretada por Iléa Ferraz, é casada ou pelo menos, mantém relação estável e tem família estruturada com um homem branco-europeu. Imagino que na intimidade, diretores, roteiristas, etc, devem ter combinado: “vamos calar a boca desses chatos de plantão que reivindicam negros na nossa Bahia. Vamos dar um tapa de luvas nesses implicantes e tratemos de apresentar uma mulher negra bem posicionada socialmente.”

Outro exemplo é a prostituta negra da rua das quengas, interpretada por Maria Gal. Esta é o chamego do jagunço chamado lorinho, diminutivo de loiro. Mas o nome do moço pode também ser referência a um papagaio, ou a uma característica falastrona do capanga, podem me dizer as pessoas incrédulas. Não me convenço, fico mesmo com meu entendimento de que a mensagem subliminar é de que os loiros gostam mesmo das negronas, seja como putas, seja para constituir família. E viva a democracia racial!

O mais são as negras não-desejáveis e as desejáveis, trabalhadoras das casas abastadas, além da bela sem nome, amiga de Gabriela da feira dos retirantes e do terno de reis.

O homem negro de destaque é Fagundes (Jhe Oliveira), um matador de aluguel estúpido e cruel. Estúpido porque seria capaz de matar o marido de Gabriela que o esconde em casa, se este tivesse surgido na porta do cômodo onde estava acoitado. Note-se o detalhe de que Nascib apareceria desarmado e sem condição de fazer qualquer movimento para delatar Fagundes a seus algozes. Quando Gabriela o repreende e diz que ali acaba a amizade deles, Fagundes explica que mataria para se proteger. De que ou de quem, ninguém sabe. O jagunço ainda conclui que precisava pensar primeiro em si. Não tem lógica! Ele mataria porque é incapaz de pensar, como pensam que os negros, de um modo geral, devam ser. Outra possibilidade é de quisessem inserir um texto qualquer na boca de um personagem de apoio para evidenciar a protagonista. Ocorre que criaram frases desconexas que qualquer analista de continuidade atento, vetaria.  

Mas do que mesmo eu gosto em Gabriela? Gosto da fotografia, da interpretação, de cabo a rabo, todo mundo está muito bem, especialmente Leona Cavalli (Zarolha), Gero Camilo (Miss Pirangi) e Ivete Sangalo (Maria Machadão). Gosto das nuances do texto que percebo nos diálogos dos personagens considerados importantes, ou nem tanto. A expressão do amor de Clemente por Gabriela, por exemplo, é de uma beleza sem igual. Gosto da música (até no Babado Novo presto atenção quando canta o tema de uma das mocinhas da trama), do folhetim bem construído, afora os escorregões previsíveis na democracia  que bem conhecemos.

Gosto da resposta que o Nacib de Humberto Martins dá aos homens que esperavam dele a representação de um bode bufando atrás do traseiro de uma cabra. Como não li o livro, tampouco assisti à versão original da novela, não imagino qual será o desfecho do casal. Só sei que, até o momento, Nacib tem hormônios na medida certa. Houve quem reclamasse de que o turco comia Gabriela com os olhos, ao invés de comê-la como se devia. Tolinhos! Nacib não é bobo e come Gabriela como ela gosta, não como a testosterona imbecilizada prescreve.

É porque me divirto com Gabriela, que sempre que o sono deixar ou que não tenha coisas mais interessantes para fazer acordada, acompanharei a novela ambientada na Bahia global para, dentre outras coisas, compreender como pequenas conquistas cidadãs são incorporadas à mudança conservadora.  

E que venha Subúrbia, com participação luxuosa de Paulo Lins no roteiro e elenco composto pelo maravilhoso Haroldo Costa, Rosa Marya Colin, Dani Ornellas, Tatiana Tibúrcio, Fabrício Boliveira, Érika Januza (apontada como atriz revelação) e Cridemar Aquino, o Xangô mais lindo que meus olhos já viram no palco.

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