O autor: quem ele pensa que é?


Por Julio Silveira (no Publishnews) 


Caiu a ministra, enfim. Não cabe aqui comentar sobre a complexa rede de interesses que a derrubou de um ministério que, em termos de participação no orçamento nacional, representa menos que a Marinha para a Bolívia. Porém é pertinente e urgente tratar de uma questão, que foi postergado pela gestão de Ana de Hollanda e que gerou polêmica e reflexão: o direito do autor, e seu papel na hora de definir, assumir e ser remunerado por esse direito.
Logo no começo de sua gestão, a Ministra mandou retirar do site do MinC a marca do Creative Commons. Foi um ato aparentemente sem efeitos práticos, mas que sinalizou um posicionamento — francamente reacionário — da pasta da Cultura em relação à modernização dos direitos dos autores, além de suspender o processo de evolução da Lei dos Direitos Autorais, que vinha, a passos lentos mas seguros, caminhando há sete anos.
À polêmica suscitada se seguiram respostas titubeantes (como a necessidade de licitação para contratar um serviço gratuito), que deixaram patente que a ministra, em termos de direitos autorais, olhava para trás, para o século 19, quando foi criado o atual instituto legal — o copyright.
Embora muita gente iguale “copyright” a “direito autoral”, basta uma tradução para deixar clara a diferença. “Copy right” é o direito de fazer cópias, ou seja, exemplares. É o instrumento pelo qual o autor cede os direito de impressão e comercialização. Portanto, é um direito da editora — não do autor. Quando as partes se encontraram em Berna, em 1886, para criar o Instituto, ficou claro que, no embate entre o interesse dos autores (liderados por Victor Hugo) e o das editoras, as últimas foram as vencedoras. É por isso que hoje se fala de copyright (um direito das editoras) e não de droit d’auteur.
A questão é que esse arranjo regulou e atendeu perfeitamente a necessidade de autores e editoras, e criou uma simbiose econômica estável, permitindo a consolidação da indústria publicadora. Os recursos indispensáveis para a disseminação da obra (impressão, distribuição, promoção) ficaram nas mãos das editoras. É por isso que hoje muitas pessoas, como a ex-ministra, equiparam “direitos autorais” a “direitos trabalhistas”. A relação entre as partes obedecia ao esquema básico do Capital: mão de obra (intelectual, que seja) dos autores e meios de produção, das editoras.
Mas isso foi até agora. No século 21, o digital colocou na mão dos criadores os meios de produção (“impressão”, distribuição, promoção). Técnica e teoricamente, o autor pode dispensar o intermediário entre ele e o leitor. A indústria fonográfica, a eterna boi de piranha da indústria cultural, já viu isso acontecer, e se agarrou ao antigo status quo até beirar à obsolescência. Alguns escritores também se apegam ao antigo sistema, com um banzo semelhante ao dos israelitas que, à caminho da Terra Prometida, lembravam das cebolas e dos alhos que comiam no cativeiro. A liberdade pesa.
Pode-se discutir se o Creative Commons é a melhor solução para suceder ao cada vez mais defasado instituto do copyright — mas temos que reconhecer que ele é uma ação, não uma reação. Em essência, o que ele faz é deixar claro o modo como o autor exerce seu direito. O criador pode optar por exigir remuneração e crédito pela replicação de sua obra ou, no outro extremo, estimular o livre diálogo criativo e os desdobramentos e alcances de sua obra (aqui temos um exemplo de remix infeliz mas frutífero). O importante é que cabe a ele, e não ao intermediário, a decisão. Isso é uma tomada de poder.
Instituir o Creative Commons ou outra forma de ordenamento legal vai ajudar a regular, mesmo economicamente, a criação digital, diminuir o risco da entropia total (pirataria, plágio), dar poder (e flexibilidade de uso) ao criador e resolver o paradoxo imposto pelo “copyright” — a quem o autor vai ceder “o direito de cópia” sobre suas criações que, por imateriais, não precisam ser “copiadas” (replicadas)?

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